Influência da literatura de Tolkien na música - parte I

Na última quinta-feira, dia 16 de janeiro, a comunidade tolkieniana ficou de luto: Christopher Tolkien, o filho herdeiro literário do lendário J. R. R. Tolkien, faleceu aos 95 anos. 
Autor de O Hobbit e o O Senhor dos Anéis - que é um dos livros mais lidos do século XX - tornou-se um ícone literário que influenciou muitos escritores, bem como outros segmentos como jogos, desenhos, músicas e recentemente, filmes e seriados de fantasia.


J. R. R. Tolkien fumando cachimbo, algo que adorava fazer e usou o costume para compor e definir os hobbits
A notícia veio com um pesar muito grande para muitos de nós, que não somos meramente fãs de sua literatura. 
O professor Tolkien faleceu em 1973 e deixou vários escritos inacabados. Depois de passar a vida ajudando o pai nesse trabalho de escritor, Christopher teve, entre os irmãos a responsabilidade de tocar o trabalho de ajuntar todos os manuscritos para publicações póstumas. Logo, foi graças à eleque tivemos em mãos O Silmarillion, Os Contos Inacabados, As Histórias da Terra-Média, Os Filhos de Húrin, entre outros. 

Era Christopher também que oferecia, até então, uma certa resistência (justa, vale mencionar) às adaptações cinematográficas ou televisivas das obras de seu pai. Crítico, não concordou com a adaptação de O Senhor dos Anéis, dividido em três filmes (A Sociedade do Anel de 2001, As Duas Torres de 2002 e O Retorno do Rei de 2003) dirigidos por Peter Jackson, por entender que as adaptações não colocavam a verdadeira essência das obras, focando em agradar um público jovem sedento por ação e, com isso, acabando por deixar de lado o impacto filosófico da narrativa.

Ainda que, como fã dos livros e posteriormente, dos filmes, fico em cima do muro, com relação à esses filmes de PJ. Discordo e concordo ao mesmo tempo com Christopher. 
Discordo pois, livros no cinema é isso: "adaptações". De acordo com as regras do cinema, funciona de uma forma diferente. É óbvio que algo (ou muito) se perde. A indústria é outra, o público também, e o apelo é ainda mais diverso. Nos filmes, ou mesmo nas séries, o foco deve ser a ação, as amarrações da trama devem ser mais impactantes sob o ponto de vista dramático e é necessário ainda, um romance - o que no livro, fica em um plano muito afastado do propósito da história. 
São raros as adaptações que superariam os livros. E em boa parte delas, não são melhores ou piores, são apenas diferentes. 

Mas também concordo que filmes, ainda que saiba que são uma mídia diversa, são triviais. Em todos os casos, estamos à mercê de interpretações de roteiristas e diretores e não a nossa enquanto leitores. Com o filme sobre uma história de livros, a imaginação desaparece. O impacto das palavras é outro e os detalhes da narrativa passam batido em cerca de duas horas de película. Além disso, certas cenas são feitas em moldes de Hollywood. O melhor exemplo, já foi mencionado: trazer em evidência, um romance. Aragorn e Arwen é um assunto detalhado nos apêndices de O Senhor dos Anéis, o relacionamento é mencionado numa alusão indireta em uma conversa entre Aragorn e a personagem, Éowyn, durante quase 1000 páginas de narrativa. 
No entanto, no filme, Arwen é colocada com muito mais importância que no livro, uma razão compreensível é introduzi-la na trama e dar-lhe profundidade. Ela é quem salva Frodo depois de um ataque do Rei Bruxo de Angmar n'O Topo do Vento "Amon Sul". Quem faz isso no livro é o elfo Glorfindel. A outra justificativa é engatar o "namorico", levando inclusive à uma alteração (ainda que sutil) na história: é Arwen quem dá "forças" para Aragorn cumprir o seu destino e provar que não tem a mesma fraqueza de seu antepassado, Isildur.
Essa e outras, são estratégias de puro mercado, e nisso, Christopher teve toda razão em se colocar contra e travar os direitos de adaptações de outras obras. O pai abominava a ideia, ele não poderia ser diferente. Sob estes aspectos, sim, adaptações mancham as obras originais, feitas com tanto esmero e cuidado. Tolkien demorava muito tempo revisionando seus livros para serem publicáveis. Demorava a ficar satisfeito. Essa cultura de demandar tempo, não pode nunca, estar pairando em produções cinematográficas. 

Além de tudo isso, as adaptações tem um outro lado, que também é dúbio: ao mesmo tempo que divulga a obra escrita para os jovens, banaliza a literatura. Tendo as adaptações de filmes, são raros aqueles que recorrem aos livros para fazerem as suas próprias interpretações. É uma questão de preguiça mesmo. Os filmes são resumos de poucas horas de livros que podem demorar dias para serem lidos. Assim, a maioria fica a mercê daquilo que produtores acharam mais legal de por na tela,  dentre as tais, recortes, acréscimos e outras decisões, como a contratação de atores que estão em alta (que não necessariamente combinariam com os papéis designados) e acréscimos de personagens que não existem na narrativa - como foi o caso de Tauriel na adaptação de O Hobbit (também dividido em três partes, Uma Jornada Inesperada de 2012, A Desolação de Smaug de 2013 e A Batalha dos Cinco Exércitos de 2014). 
A personagem, feita pela atriz Evangeline Lilly, altera drasticamente a narrativa: interfere na jornada dos 13 anões, Gandalf e Bilbo a ponto de termos um bizarro romance entre ela (uma elfa) e o anão, Fili. Além disso, a atriz é caricata e parece muito mal na pele de uma elfa guerreira. Tudo foi feito apenas com o propósito de ter uma mulher numa história que só contém personagens masculinos, no afã de atender a demanda de personagens fortes e empoderadas. 
Legolas também aparece, embora não exista no livro. O relacionamento que não chega às vias de fato (graças!) entre Tauriel e Fili foi (disseram Guilhermo Del Toro, Peter Jackson e Philippa Boyens, que assinam o roteiro) uma forma que encontraram para explicar porque elfos e anões "se odeiam" - retratado melhor na rivalidade de Legolas e Gimli, nos filmes adaptados de O Senhor dos Anéis. O que fica disso tudo, para o fã mais conservador, é uma besteira só, já que Legolas acaba ficando com fama de "corno", de estar na "friend zone" e totalmente frustrado pela aparente "troca".
Sim, é de doer nos rins. 

Em 2017, Christopher deixou o posto de herdeiro literário do pai como se tivesse se aposentando. No mesmo ano, a Amazon anunciou que produziria uma série pautada na Primeira Era da Terra-Média, algo como um antes do que se passa em O Senhor dos Anéis
Os fãs não conservadores ficaram empolgados e agora, eles que eram contra a excessiva proteção de Christopher, entendem que as adaptações das obras do professor Tolkien virão com muito mais facilidade. 
Particularmente, como acadêmica que direcionou estudos voltado à fantasia e ao autor, fico com os dois pés atrás com toda as notícias de produção televisiva e cinematográfica de suas obras, ainda mais em tempos de discussões tão frívolas. 

Mas, deixamos essa discussão de lado. Deixamos aqui registrado o lado positivo de toda a forma que tenha surgido pós Tolkien, nas várias mídias. Um bom período para começar a citar é a década de 196. Tolkien era um autor devorado, especialmente pela galera da contracultura. E por aqui, não teríamos tanto fácil acesso às suas escritas publicadas e não fosse a divulgação por músicos ou outros autores, colocando holofote nesse tipo de literatura. 
Graças também ao grande sucesso de J. K. Rowling e o Harry Potter, a fantasia voltou com tudo e os filmes de Peter Jackson no começo dos anos 2000 ajudou que o interesse se ampliasse. Foi a partir de Christopher e seu trabalho de junção de todos os manuscritos com o mesmo critério respeitoso que tinha seu pai, nos abriu mais possibilidades de leitura de outras obras que não foram organizadas a tempo para publicações. Sem Rowling ou os filmes, seu trabalho poderia ter ficado só em território europeu e América do Norte, como bem sabemos. Não há uma difusão do costume de ler em nosso país, e talvez, não teríamos tanto interesse de editoras por aqui, se não fosse a levada de Tolkien para a cultura de massa.


No ano de 1965, uma cópia pirata do O Senhor dos Anéis circulou entre os jovens americanos e acabou virando uma das obras ligadas ao movimento hippie, graças à temática pacifista e de defesa do meio ambiente. Em um tempo de mudanças sociais aceleradas nos Estados Unidos, os livros  de  Tolkien, lançados pouco tempo antes, se tornaram leitura obrigatória para a contracultura que nascia na época. Estudantes, artistas, outros escritores, músicos e intelectuais mentores da mudança cultural transformaram Tolkien numa espécie de "guru". Slogans como "Frodo vive" e "Gandalf para Presidente" eram pichados nas estações de metrô de diversas partes do mundo.


Na década de 1960 e 1970 o slogan "Frodo Lives" estampava as paredes de metrô e banheiros públicos. Havia até bottons com tais dizeres. 

Infelizmente, não é de hoje que as pessoas tem o costume chato e desagradável de desvirtuar o significado das coisas para defender ou julgar pontos de vista. A "erva de cachimbo" das quais os hobbits tanto gostam foi levada à simbologia ou metáfora pelo uso da maconha. Havia até quem dissesse que o professor de Oxford, fervorosamente católico, teria consumido drogas alucinógenas para compor seus livros de fantasia. Um completo absurdo! A "erva do cachimbo" não era maconha. Tal ideia, foi fortemente negada pelo próprio Tolkien indicando que tratava-se apenas de uma variante do tabaco, nada mais. 

Outro fator que sempre teve grande apelo junto a esse público foi uma forma mais simples e medieval de vida retratado no livro em contraposição com o caos urbano e da modernidade. Tolkien exaltava os elementos mais comuns da natureza, como as montanhas, as árvores, os rios e o fogo. Os hobbits viviam de agricultura e pecuária, em um grande feudo, simples, chamado de Condado. Esse estilo de vida com menos modernidade e contra a poluição era defendido por muitos vegetarianos que construíam suas próprias casas, faziam as roupas e viviam em comunidades hippies na década de 1960.
Além disso, esse pessoal combatia guerras e lutava por direitos civis e das mulheres. Para eles, esse era o principal contexto dos livros. Levados por um discurso político e ideológico, os heróis de Tolkien eram os hobbits, as pessoas pequenas, transformados em ícones que lideravam uma revolução.
O complexo militar industrial da época foi associado com Mordor e sua visão mecanizada de guerra. Ao saber de sua missão para levar o Um Anel para sua destruição nas Montanhas da Perdição, onde fora forjado, Frodo preferiria  descansar e ficar em paz em Valfenda - ou Rivendell. Mas aqueles que lutavam ao seu lado decidiram que o conflito final contra Sauron era a chance de travar "a guerra que vai acabar com todas as guerras". Essa era a mentalidade da época, em relação à Guerra do Vietnã. Era uma guerra que não tardava em ser a última e num futuro próximo, todos viveriam em paz e em harmonia. 

Até hoje, Tolkien é colocado nessa forma alegórica em diversas matérias: todo governo tirano que passamos, é indicado como uma personificação real de Sauron, um "senhor dos anéis" que controla as minorias e subjuga os povos. Isso (infelizmente) sai do controle de todos os autores. Mesmo que sua intenção seja suscitar outras ideias mais profundas que qualquer alegoria, não se escapa dessas superficiais interpretações. Tolkien detestava associações alegóricas para qualquer que fosse a literatura. Para ele, se o autor tinha esse motivo ao escrever uma ficção, ele poderia falhar. Querer fazer uma história alegórica sem um outro nível ou aberta tirava a liberdade interpretativa do leitor, em seu pensamento. Apesar de conservador, ele não condenava que alguém associasse algum discurso ideológico à um escrito seu, contanto que não dissessem que essa era a sua intenção primordial. Tolkien não discursava, apenas escrevia histórias do tipo que gostava de ler. Contar uma boa história e fazer com que o leitor "entre" dentro da narrativa era o que o motivava. Com a obra pronta, a forma interpretativa do que estava escrito, estava à cargo do leitor e não mais do autor. 

Os mencionados direitos civis e direitos das mulheres estão lá para quem queira encontrá-los. Uma pessoa que acredite que não é bem esse o contexto de O Senhor dos Anéis. Exemplo: a personagem Éowyn, sobrinha do rei de Rohan, ao ser questionada por Aragorn o que ela mais teme, responde: 


"Uma jaula. Estar aprisionada, até ser consumida pela idade, e que a oportunidade de fazer grandes realizações esteja fora do alcance ou desejo."

Expliquei muito pouco do contexto da resposta. E foi de propósito. Deslocada do contexto, fica muito mais fácil fazer a interpretação que se queira. Nos anos 60, esse recorte tinha ressonância entre as feministas. As mulheres, viam que Éowyn enfrentava dificuldades impostas pela sociedade patriarcal. Ela queria defender os que amava, lutar pelos direitos e tinha os mesmos motivos, assim como seu irmão, um forte guerreiro. 
Quando li essa passagem, nem pensei nisso. Me identifiquei pois, por outras razões, não por repressão ou desejo de emancipação.  
Mesmo assim, já li matérias que indicavam que Tolkien era preconceituoso (pois o negro é associado ao mal - "wtf?") e  também sexista (já que seus heróis são sempre, homens ¬¬'). Como diz o ditado: quem procura, acha. E hoje em dia, estamos rodeados de acusadores, os novos "caçadores de bruxas", mas também daqueles que se vestem de "arautos" da verdade. 

Abro hoje uma sequencia de postagens que farei sobre bandas que tiraram da literatura tolkeniana, inspirações para seus próprios nomes, composições e artes visuais de discos. Por ser um dos maiores contadores de histórias, Tolkien foi fonte das quais muitas bandas de Rock e Heavy Metal - das mais clássicas às mais extremas. E estes beberam dessa fonte sem se preocupar com os limites. 
E por falar na década de 1960, o mundo do rock - que sempre teve uma ligação forte com os movimentos de contracultura - se inspirou em Tolkien e assim, muitas outras banda fizeram o mesmo nos anos seguintes. Em 1960 mesmo, os Beatles cogitaram fazer uma versão de O Senhor dos Anéis – com Paul no papel de Frodo, Ringo como Sam, George como Gandalf e John como Gollum. Tolkien na ocasião, sempre negou as propostas de adaptações. Seus livros não era para cinema, para fazer em um "sucesso" exagerado, eram complexos demais para a indústria. Por sorte, a produção nunca chegou a sair do papel. Penso que teria sido desastroso...
Assim, no auge da contracultura, Led Zeppelin, Pink Floyd, foram influenciados na composição de letras a partir da obras maravilhosas do autor inglês. Mais tarde, Rush e até Black Sabbath beberam da mesma fonte e isso acabou sendo mais uma alavanca para as obras de Tolkien tornarem-se tão importantes como são, ainda hoje. 

Nas próximas postagens, o Musique-se irá trazer essas bandas e tantas outras que tiveram em Tolkien, inspiração para ótimas músicas e até, discos conceituais, inteiros. 

Até lá e abraços afáveis!

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