Musique-se recomenda: Documentário “Metal – A Headbanger’s Journey” de Sam Dunn (2005)

Na semana em que surgiu novamente a discussão de que "música pesada" liga-se à comportamento imoral, a sugestão para o fim de semana é um documentário sobre Heavy Metal até antigo, mas útil sobre o assunto.

Apreciador do Heavy Metal desde a infância, Sam Dunn decidiu retratar o gênero em um documentário lançado em 2005. Ele começa a sua fala com um ano importante: 1986.
Um ano antes, a organização americana do “Parental Music Resource Center” criou uma lista de canções consideradas impróprias pelo seu conteúdo aos jovens. Essas canções, na visão dos pais conservadores da organização, encabeçada por Mary “Tipper” Gore (esposa do senador e ex vice presidente Al Gore) as músicas tratavam de temas espinhosos demais para os jovens: sexo, violência, consumo de drogas e ocultismo. Logo, o selo “Parental Advisory Explicit Content” estava colado em diversos álbuns. 
Da lista oficial, grande parte provinha de músicos e bandas de Rock e Heavy Metal, tais como Mötley Crüe, Twisted Sister,  W.A.S.P., Mercyful Fate, AC/DC e Black Sabbath. A TV americana explorava o assunto: colocava as pessoas do movimento a comentarem sobre essas músicas baixas que eram produzidas por gente mais baixa ainda. Divulgavam que as músicas eram meios de propagação ou divulgação do Diabo para os filhos dos bons cidadãos americados. Era como se o Capeta precisasse de uma promoção, como se ele já não fosse “famoso” antes (rsrsrsrs...), conservadores americanos se uniram para destruir aquilo que aterrorizava e atacava a moral deles. Com medo de serem pais que falharam na educação de seus filhos, fizeram algo não novo, quiseram proibir atiçando a curiosidade de muitos outros jovens e causando uma raiva danada em muitos músicos.

A cultura em torno desse gênero musical não mudava: constantemente era estereotipada e condenada. E o ápice foi naqueles anos finais da década de 1980 - o Heavy Metal era o Sócrates da contemporaneidade, ou seja, corrompia os jovens para um mundo dado como “subversivo”. Essa é a problemática que Sam Dunn usa como fio condutor do documentário.
Buscando então, a partir de sua formação em antropologia, Dunn sacou as armas para despir o estilo musical, mostrando toda a sua essência, longe dos “pré conceitos” já formulados por, diga-se de passagem, gente ignorante e/ou bitolada em (falsos) moralismos. (Nem parece que falo de discussões de mais de 30 anos atrás, não é mesmo?)

Tudo começa com o debate sobre a origem – que é semelhante ao debate do “quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?” – chegando ao Black Sabbath, depois de algumas menções de outras bandas e opiniões de figuras como Geddy Lee ou Alice Cooper. Com Tommy Iommi vem à tona o que comumente identifica o HM: um “som satânico” representado pelo chamado “tritão” – o si bemol, uma nota que remonta a sua proibição numa música nos tempos de Idade Média, por entender que o som dessa escala “evocaria” a Besta. 
Então, o que está no cerne do HM não seria só um som diabólico, mas outros componentes que juntos, formam o estilo: guitarras elétricas com amplificadores e distorção, um baixo forte, tanto o das cordas quanto o dos bumbos, acrescido de um vocal – usualmente agudo – para sobrepor a tudo isso.  Desse gênese, vieram outros, subgêneros: New Wave of British Heavy Metal, por exemplo. Já pensaram em Bruce Dickinson? Ótimo, pois esse é posso seguinte do documentário e toda a importância do vocal operístico que não propositalmente, Bruce trouxe ao estilo e que o moldou por completo, mas não fechou em si mesmo.

As origens estão – por incrível que pareça – na música clássica e especialmente, no blues. 
E assim, Dunn passa pelas citações, entrevistas com músicos icônicos, e também fãs,  especialmente para saber mais sobre esse gênero que tanto influencia o modo de vida, destes. Falar dos fãs é um bom gatilho para uma visita ao festival Wacken Open Air onde se concentram os “metalheads” do mundo todo, uma vez ao ano, na pequena vila de Wacken, em Schleswig-Holstein, no norte da Alemanha, para ouvirem e verem as bandas da cena, ao vivo, beberem, confraternizarem em grandes grupos e consumirem produtos como álbuns, camisetas e acessórios. 
A questão da identidade é mencionada com estes fãs: suas vestimentas, e a sua “persona” também. Não difícil, chegamos aos símbolos – com Dio, se fala do gesto com o dedo indicados e mínimo erguidos, como chifres, conhecido como “maloik”. Hoje, ele é usado como gesto de adoração a ritos satânicos, e por qualquer um que esteja em shows de rock. A sua difusão nas redes sociais fica mais evidente quando alguém se exibe nos festivais do Rock In Rio, nos dias de “Rock, bebê!” (..).  Obviamente não sabem que fazer isso muitas vezes é uma ironia, já que o Rock e o HM sempre foram considerados satânicos.  
Ao longo da carreira, Dio popularizou a expressão da "mão chifrada". No documentário Metal: A headbanger's journey, ele comenta que sua avó fazia o gesto para afastar ou lançar "mau-olhado" para alguém, gesto bem comum entre supersticiosos do Mediterrâneo e a descendência italiana de Dio (seu sobrenome é Padavona) naturaliza o uso por parte do músico. Fora isso, não há nenhuma razão específica que headbangers façam o mesmo por aí.

Outro ponto mencionado é a questão do Heavy Metal ser um campo freqüentado por homens. Menciona-se a questão da homossexualidade e da tomada de espaço conquistada pelas mulheres, como a Girlshool e frontwomans, com o foco nas declarações de Angela Gossow, na época ainda vocalista da banda sueca, Arch Enemy e da rainha do metal, Doro Pesch. 

A exposição do rolo do “Parental Advisory” num dos recortes parece ainda muito próximo de nós. Temo que seja algo que não tarda de acontecer por aqui, com a decisão do órgão de fomento Funarte de barrar bandas de Rock, noticiado ontem.
Parece até que evocamos a discórdia. Quando preparei parra sugerir esse documentário no começo da semana, não havia nenhuma sombra maligna que ameaçasse e acusasse o Rock ou Heavy Metal de – de novo – corromper os jovens para “o mal”. Sim, esse é o mote do documentário. Explicitamente, Dunn coloca que a música pesada sempre foi associada a satanismo. E há 30 anos do PMRC, há mais de 40 anos dos primeiros sinais do HM, e muito antes, desde Wagner ou Bach se fala em músicas moralmente discutíveis. O moralismo cristão teima em continuar essa guerrilha. No entanto, sem o cristianismo, não haveria HM. A dicotomia fez e faz parte do gênero e sempre houve algum som que era moralmente condenado pela sociedade cristã, como é mencionado no documentário sobre o “si bemol”.

Num dado trecho, Alice Cooper diz que o satanismo mostrado pelas bandas, não é o real. É uma caricatura. Um pouco antes, Corey Taylor, vocalista do Slipknot, premissa que a cruz invertida e o pentagrama são símbolos que remetem à Black Sabbath e Slayer, ou ao som que essas bandas produzem. É legal, mas ele (e muitos outros) não acredita que por utilizarem esses símbolos como marcas visuais querem, de fato, que o Diabo governe o mundo. 
Com a citação de Venon e posteriormente, uma entrevista com os caras do Slayer, dá para começar a entender algo sobre essa (eterna) luta entre religião e o som pesado, com a fala de Tom Araya – que é (numa contradição interessantíssima para se pensar) católico. 

Digam que não pode, que não é aceito. Barrem, limitem, cortem toda a possibilidade de escolha, de liberdade, de criação... E como resultado, teremos grandes obras produzidas. 
O que falta no pessoal, e talvez o documentário não explicite de forma escancarada é o seguinte: as bandas queriam causar algum impacto. Não creio que as artes devam ter papéis estritamente sócio-políticos. Se você transforma alguma arte em discurso ideológico ou moral, é preciso saber que você está fazendo isso por você mesmo e deve arcar com as conseqüências. 
Essa separação de bom ou ruim de qualquer coisa, de ser útil ou não para a sociedade, é um critério levado muito a sério, que de toda a forma, tolhe, corta aquilo que não é lógico ou explicável. Em suma: não há definições que conceituem os sentimentos causados pela expressão artística, seja ela qual for. As músicas, que por ventura, atacam as crenças em Deus nas letras, cultuam o Diabo, não são postulados. Nem os compositores acreditam piamente no que dizem nas letras porque o público deveria?

Mas Sam Dunn vai à Noruega, contatar bandas/músicos, que realmente “acreditam em Satã”. 
Certa vez fiz um estudo na faculdade, sobre o medo na Idade Média. Nesse estudo – que pressupunha ser um ensaio, bem curto, apenas uma colocação de uma problemática da historiografia – eu trouxe para a pesquisa a contemporaneidade como contraponto para pensar o medo naquele contexto histórico. Em uma passagem, eu cito o movimento de Black Metal que incendiava igrejas no norte da Europa, na Noruega, em especial. A minha conclusão – rasa, de aluna de graduação verde ainda – era que o mal não estava nas entidades sobrenaturais, mas sim, nas próprias pessoas. 
No documentário, há os caras extremos que apoiaram a queima de igrejas e defendem o ato como um movimento de mostrarem o ponto de vista deles. Outros líderes de bandas entendem que, de uma forma ou outra, o cristianismo (enquanto instituição) merecia sofrer tais ataques. 
Os caras falam em liberdade, e num ato radical decidem pelos cristãos como os cristãos decidiram (e decidem) pela moral vigente em suas sociedades. 

Assim como existe a dicotomia do bem e do mal, a repressão e a liberdade, também existe o medo e o fascínio. Essas duplas andam (muitas vezes) de mãos dadas e fazem parte da essência da vida humana.  Assim, o passo seguinte é falar do Death Metal. As capas de álbuns dessas bandas sempre mostram corpos dilacerados e as letras, falam de morte numa grande obsessão, no entanto, a violência contidas nessas imagens e letras situa algo presente em todos nós: o medo da morte – o destino inevitável. Não há muita diferença com (novamente) as iluminuras medievais que retratavam as pragas, as doenças, os moribundos cercados da morte à espreita como figuras monstruosas e cadavéricas.

Essas relações humanas sempre me atraem. Não é a toa que tenha estudado História (embora o humano tenha sido deixado de lado em muitas pesquisas recentes, o que é lamentável para a historiografia). 
Embora o documentário seja de 2005, foi ainda no começo da minha graduação que um amigo me passou o documentário para assistir. O que penso sobre música, e em especial, o HM que é um gênero que considero o meu preferido molda a minha personalidade. É através da música que eu encontro paz ou canalizo a atenção como escape de um dia ruim. 
Sobretudo agora, formada, interpreto o gênero musical como Sam. Entendo as artes, e no caso o HM como uma manifestação da complexidade humana, especialmente da mentalidade. No documentário, é possível ver os dois lados – dos defensores e contrários – ao estilo musical. Em certo momento, as pessoas acusam a música de desencadear maus comportamentos. Dee Snider, do Twisted Sister comenta que, basta aparecer um assassino e a TV noticia que ele era fã de uma banda ou um músico de som pesado e está dada a razão de toda a sua crueldade.
Lendo uma letra procurando alguma perversidade, você irá encontrar. Assim como formulei a teoria de que o mal não estava na motivação em agradar satã, as pessoas mesmo é que são cruéis. 

Ao final do vídeo, Dunn contempla uma ideia que compartilho: se você sente ou não a música, se o HM te provoca numa sensação eufórica e de poder, se não te causa nada, a não ser uma necessidade de se afastar, então, você não vai compreender o estilo. Talvez até, correndo o risco de soar passional, o rock e o metal sejam os gêneros mais complexos produzidos pelo homem e não entender que somos seres com várias camadas, que temos mais de uma reação para diversas coisas, seria impossível de se comprometer a explicar. 
A julgar pelo número de pessoas que ainda sustentam o estilo HM desde a década de 1970, e o rock, à muito mais tempo que isso, estamos bem sem sermos compreendidos. Com nossos pares e com a nossa música nos sentimos incluídos e fortes. 

Abaixo, o trailer:


Sugiro que assistam ao documentário e façam as suas próprias formulações! Em alguns sites de streaming está disponível para assistir. No Youtube, o documentário completo só se encontra sem legenda uma em português. 

Abraços afáveis e Musique-se!

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