Por que Elis Regina foi a maior cantora do Brasil? por Alessandra Alves

Elis Regina foi a maior cantora da história da música brasileira apesar de ter morrido com apenas 36 anos, no dia 19 de janeiro de 1982, e não por causa disso. A morte precoce eterniza o jovem e o belo, anula futuros equívocos, mitiga defeitos, elimina as mazelas da velhice. Mas não é pelo que deixou de ser – e sim pelo que foi – que Elis Regina segue como a grande referência entre as vozes femininas do Brasil.
cenas do Show Falso Brilhante, 1976

Um levantamento do Spotify, de 2017, colocou Elis na posição de número 86 entre os 500 artistas brasileiros mais ouvidos na plataforma.
Contemporânea de Elis, Gal Costa aparece em 136º. Maria Bethânia, em 139º. Há cantoras atuais, fartamente divulgadas pela mídia, que também surgem atrás de Elis na lista. Claudia Leitte, por exemplo, é a 93ª. Daniela Mercury, 325ª.

Nos programas de calouros, sinal de coragem é cantar alguma música eternizada por Elis.
Não raro, o incauto escolhe “Como nossos pais”, de Belchior. Péssima ideia. “Por ISSO, cuidado, meu bem...”. Tente você cantar esse verso, usando a palavra “isso” como se fosse um punhal afiado, do jeito que Elis fazia. Não rola.
O tom que ela imprime a essa mísera palavra de duas sílabas derruba um exército. Há gente boa – muito boa – que regravou “Como nossos pais” e não conseguiu alcançar o agudo que ela desferiu nesse verso. A opção, quase sempre, é fazer o que os cantores chamam de “semitonar”.
frames do vídeo de Como Nossos Pais

O exemplo acima – focado na voz – ilustra um dos aspectos determinantes para afirmar que Elis foi a maior cantora do Brasil. Mais preciso seria falar sobre “as vozes” de Elis Regina, porque de fato seu registro é muito diferente nas diversas fases de sua carreira.

A cantora gaúcha adolescente que cantou em público pela primeira vez em 1956, aos onze anos, na Rádio Farroupilha, de Porto Alegre, pouco se parece com outras versões de si mesma, ao longo de parcos vinte anos de trajetória.
Elis surgiu embalada como uma espécie de “genérico de Celly Campello”, cantora paulista adolescente que ganhou as paradas nos anos 1950 gravando sobretudo versões em português de sucessos norte-americanos.
Não era o ideal de música de Elis, mas para ter a oportunidade de gravar um disco, ela topou colocar a voz melodiosa e afinada, ainda que adolescente, em versões de músicas americanas como esta:


Anos depois, já estabelecida no Sudeste e muito mais autônoma em suas escolhas, assombrou o Brasil com a potência da voz e com a força da interpretação em “Arrastão”, música de Edu Lobo com letra de Vinícius de Moraes que venceu o Primeiro Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1965.
Elis tinha apenas 20 anos, mas já demonstrava postura e voz de uma veterana quando levou “Arrastão” à vitória.


Embora tenha alçado enorme popularidade como apresentadora de um programa chamado “O Fino da Bossa”, da TV Record, líder de audiência no Brasil dos anos 1960, a Elis desse período estava longe de ser uma cantora “de Bossa Nova”, de estilo cool, como Nara Leão ou Sílvia Telles. Sua interpretação era explosiva, a voz, encorpada, os gestos preenchiam o palco.
Elis nunca deixou de ser afinada, de demonstrar um talento incomum para a divisão musical ou de entregar interpretações muito próprias, mas foi modificando sua forma de cantar a ponto de parecer dona de outras vozes à medida que evoluía na carreira.

O período que vai de 1972 a 1980, marcando a parceria de vida, palco e estúdios com o pianista, maestro e arranjador César Camargo Mariano traz várias formas diferentes de usar a voz.
Começa, por exemplo, com uma interpretação mais contida, menos exuberante que a dos tempos dos festivais e da Record, como esta:


Não deixa de ser muito curioso que esta regravação de “Vida de Bailarina” seja uma homenagem de Elis a uma de suas musas da adolescência – Ângela Maria. Elis regravou a canção imprimindo um tom muito menos eloquente que o de Ângela, evidenciando que, naquele momento, duas décadas depois de se encantar com a interpretação original, tinha achado um caminho próprio. Ela não era mais uma caloura à imagem e semelhança das “rainhas do rádio”, nem uma imitadora de Celly Campello, nem uma cantora “de Bossa Nova”. Ela era uma nova definição de cantora.

Se Elis continuou dona de uma potência vocal suficiente para segurar agudos como este, aos dois minutos de “Eu, hein, Rosa”, de 1979:


... ela também era capaz de traduzir a tristeza, a saudade e a melancolia de um exilado de sua terra nesta interpretação ultracontida de “Sabiá”, de 1980:


Mas se eu mencionei que a voz era um dos aspectos determinantes para explicar a permanência de Elis como referência, há outro quase tão importante: além de cantar bem, ela sabia ouvir.
Criada com o rádio permanentemente ligado em casa, ela cresceu ouvindo Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto, e isso não apenas moldou a cantora como treinou os ouvidos de Elis.

Os músicos que trabalharam com ela identificavam Elis Regina como um de seus pares.
Ela não tocava nenhum instrumento, não lia partitura, mas portava-se como um músico integrado a qualquer banda ou orquestra.
Em 1979, ela foi se apresentar no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, e, dizem, odiou sua própria apresentação. O registro foi lançado após sua morte e, de fato, revela uma cantora insegura, sem fôlego em algumas passagens. No entanto, na mesma ocasião, foi convidada pelo músico Hermeto Pascoal para cantar de improviso, com ele ao piano. E perpetrou este assombro sonoro, fazendo de sua voz mais do que um veículo de palavras, mas um autêntico ou vários autênticos instrumentos que se somam ao teclado de Hermeto:


Mas não era só isso: Elis tinha ouvidos clínicos para “pescar” novos talentos entre compositores. Em 1966, auge de sua popularidade na TV Record, ela lançou um disco que tinha um pequeno grupo de autores até então desconhecidos das massas. Não perca as contas: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, isso sem mencionar Chico Buarque, que ficaria nacionalmente famoso naquele mesmo ano, quando sua canção “A Banda” dividiu o prêmio do Segundo Festival de Música Popular Brasileira da Record com “Disparada”, de Geraldo Vandré e Theo de Barros.

Nos anos seguintes, Elis seguiu como porta de entrada para as carreiras de (de novo, não perca as contas) Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, Fagner, Belchior, Zé Rodrix, Sueli Costa, Thomas Roth, Fátima Guedes, Renato Teixeira, Jean e Paulo Garfunkel. A chancela de Elis tinha tanto peso que também era capaz de ressignificar carreiras.

Fez isso, por exemplo, quando incluiu o clássico “Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa, em seu show/disco Transversal do Tempo, de 1978. O sambinha ligeiro, popular nas vozes dos Demônios da Garoa, tornou-se um lamento contundente contra o caos da habitação urbana na voz de Elis. Na época, a TV Bandeirantes produziu um especial com Elis no qual promoveu o encontro da cantora com o autor, em uma célebre sequência gravada no bairro paulistano do Bixiga:


Roqueira, frequentadora de outra patota nos tempos dos festivais, Rita Lee tornou-se amiga de Elis nos anos 1970. Sem desfrutarem de nenhuma intimidade, Elis foi visitar Rita quando a roqueira foi presa, grávida, por porte de maconha. O vínculo se formou, Rita também ganhou espaço no mesmo especial de TV da Bandeirantes e, dois anos depois, uma canção sua, em parceria com o marido Roberto de Carvalho, ganhou as paradas na voz de Elis. Consta que, na fita gravada e enviada para Elis, “Alô, alô, marciano” tinha ares de Jorge Benjor, uma farra tropical com palavras ácidas sobre o panorama mundial da época. Na voz de Elis e no arranjo de César Camargo Mariano, virou um jazz com direito a scat singing no final:


Por último, mas talvez tão relevante quanto a voz e o ouvido, há em Elis um senso artístico que parece a grande amálgama desses dois talentos. Ela concebia tudo o que fazia como produtos artísticos únicos, com conceitos muito claros.

Pegue o álbum de 1973, por exemplo: alicerçado em duas vertentes, o disco tem quatro canções de Gilberto Gil e quatro da dupla João Bosco e Aldir Blanc. Completam o álbum outras duas músicas, sambas de compositores tradicionais (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito e Pedro Caetano). Há uma unidade, uma atmosfera própria, uma sonoridade única, com alma de samba-jazz, tornando o álbum algo completamente diferente do disco anterior e do seguinte. Desse álbum faz parte “Ladeira da Preguiça”, de Gilberto Gil:


Aporte em 1977 e encontre um disco calcado em Milton Nascimento, Renato Teixeira e Ivan Lins/Vitor Martins.
Dessa base brota um disco de aura interiorana, sertaneja, cheio de violões e de sons acústicos, refletindo uma Elis grávida (de Maria Rita), introspectiva, contemplativa. E assim se deu com praticamente tudo que ela concebeu, especialmente no período da parceria com César Camargo Mariano. Do disco de 1977, a interpretação de Elis para “Morro Velho”, com participação de Milton Nascimento no violão e vocais:


A morte de Elis, por ingestão de uma mistura de álcool e cocaína, ensejou uma das maiores comoções a que o Brasil já assistiu.
Mas não foi pela morte precoce e trágica que Elis se tornou nome de avenida em Uberlândia, de rua em Guarulhos, de praça no Butantã. Tema de filme, de musical, de série para TV, de enredo de escola de samba. Nem que a colocou na primeira centena dos artistas brasileiros mais ouvidos nos streamings de música. Sua voz, seu ouvido, seu repertório, sua postura e seu senso artístico que o fizeram.
parte interna do álbum Falso Brilhante, 1975

Alessandra Alves é jornalista especializada em esportes, apaixonada por cinema e música.

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