Influência da literatura de Tolkien na música - parte VI - Pink Floyd

É... A influência de J. R. R. Tolkien na música é assunto que, digamos, dá "pano para manga"! 
E hoje, apresentaremos o que os caras do Pink Floyd absorveram do autor para a  produção de suas próprias obras musicais.

Voltamos um pouco antes de Led Zeppelin. Vamos para o ano de 1967! O disco é The Piper at the Gates of Dawn:


Esse foi o álbum debut da banda e estava recheado de letras dignas de contos de fadas. De  detalhe "especial" na historiografia do grupo, é que The Piper at the Gates of Dawn é o único registro gravado sob a liderança do vocalista, guitarrista e compositor Syd Barrett, também autor da maior parte das faixas. 
Substituído por David Gilmour logo depois, por conta dos excessos no consumo de drogas e mau comportamento - é à Syd que se deve a influência tolkieniana nas letras e atmosfera fantástica das canções.
No entanto, toda obra possui os elementos primordiais do rock psicodélico e criativo que identifica o Pink Floyd.
"The Piper" - ou seja, "O Flautista" - , parte do tútulo do álbum, é identificado com o deus grego Pã, uma das "figuras" dessa mitologia mais "fantásticas" (se é que podemos assim, determinar).
Pã é o deus dos bosques, dos campos, rebanhos e pastores. Vive em grutas e vagando pelos vales e  montanhas, caçando ou dançando com as ninfas. Sua representação é com orelhas, chifres e pernas de bode. Identificado como amante da música, traz sempre consigo uma flauta.

Se cabe outra "interpretação" - talvez não associada ao disco, mais voltado ao imaginário cultural popular - Pied Piper of Hamelin, em alemão Rattenfänger von Hameln, conhecido também como Pan Piper ou  The Rat-Catcher of Hamelin, o nosso O Flautista de Hamelin é um conto folclórico, reescrito pela primeira vez pelos Irmãos Grimm e que narra um desastre incomum acontecido na cidade de Hamelin, na Alemanha, em 26 de junho de 1284.

Neste ano, a cidade de Hamelin sofreu com uma infestação de ratos. No conto, um dia, chega à cidade um homem que reivindica ser um "caçador de ratos" dizendo ter a solução para o problema. Prometeram-lhe um bom pagamento em troca dos ratos - uma moeda pela cabeça de cada um. O homem aceitou o acordo, pegou uma flauta e hipnotizou os ratos, afogando-os no Rio Weser.

Apesar de obter sucesso, o povo da cidade renegou a promessa feita ao flautista e recusou-se a pagar o que deviam, afirmando que ele não havia apresentado as cabeças. O homem deixou a cidade, mas retornou várias semanas depois e, enquanto os habitantes estavam na igreja, tocou novamente sua flauta, atraindo desta vez as crianças de Hamelin. Cento e trinta meninos e meninas seguiram-no para fora da cidade, onde foram enfeitiçados e trancados em uma caverna. Na cidade, só ficaram habitantes adultos com seus celeiros e dispensas cheias, rodeados por muralhas e um muita tristeza.
E foi isso que se sucedeu há muitos, muitos anos, na deserta e vazia cidade de Hamelin, onde, por mais que se procure, nunca se encontra nem rato, nem criança.

Esse é um conto infantil do período medieval que, pela sua tradição oral, são também documentos históricos, como diz o historiador medievalista Robert Darton. "Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais. Longe de expressarem as imutáveis operações do ser interno do homem, sugerem que as próprias mentalidades mudaram." (DARTON, R. O Grande Massacre de Gatos. 2.ed. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986 p. 26).
A mentalidade que gira em torno de um conto de fadas é mais profundo que simplesmente ums forma de entreter uma criança e a forma como certas temáticas são ali abordadas variaram ao longo dos tempos e também se adaptavam de acordo com os povos.  

O Flautista de Hamelin é também conhecido como Pan Piper, e nisso, confere uma ideia em torno do termo Pã (ou Pan) um outro "sentido". Na mitologia grega, o deus dos bosques é temido por aqueles que precisam atravessar as florestas à noite, pois as trevas e a solidão do caminho os acomete de pavores súbitos, desprovidos de qualquer causa aparente. Estes temores - atribuídos a Pã - gerou o termo "pânico".

Mas o título do primeiro disco do Pink Floyd é The Piper at the Gates of Dawn. Baseado (também) no conto infantil, (esse, um pouco menos conhecido) O Vento nos Salgueiros, de Kenneth Grahame, completa a questão sem maiores especulações. A história gira em torno de quatro personagens antropomorfos (o Rato, a Toupeira, o Texugo e a Lontra) em uma Inglaterra rústico, e estão presentes valores como misticismo, aventura, moral e camaradagem e um pouco sobre a interferência da acelerada transformação moderna na Inglaterra no começo do século XX.  Esse conto data de 1908, e num dado trecho, o Rato encontra a Lontra e descobre que o filho dessa desapareceu. É o deus Pã que os ajuda a localizar o filhote. Daí o nome do álbum: The Piper at the Gates of Dawn, título do capítulo desse conto de fadas moderno.

Tolkien era um entusiasta de contos de fadas. Para ele, as crianças não deveriam ser as únicas a ter esse tipo de leitura. Se eram o público alvo, compreendia que fosse nada mais que um "acidente doméstico". Elas não eram mais capazes de "entender" os contos que eram à elas relegados, mais que os adultos. Por sinal, estes últimos não eram impedidos de ler e se maravilharem na mesma proporção que as crianças - talvez até mais que elas.
Longe de procurar também com o que diziam sobre os livros de contos fantásticos deverem seguir moldes pré determinados (começando com "era uma vez" e terminando com "viveram felizes para sempre"), o autor inglês também era a favor de desvincular o gosto por esse gênero literário do chamado sentimento de "escapismo" ou de "faz de conta". Nesses sentidos, o escapismo era uma fuga da realidade que, não poderia ser levado à ferro e fogo. E se alguém lesse um conto fantástico, fingindo acreditar no que lia, como se "fazendo de conta" poderia compreendê-lo melhor, determinaria que o autor então, fracassou na história que conta. Acreditar na história, entrar nela e saber que, ali nada é estranho, apenas faz parte das leis daquele mundo secundário (ou, subcriado, como ele nomeia) é o sucesso que um escritor atinge enquanto subcriador. Se ele consegue essa "entrega" de seu leitor, ele então foi bem sucedido em sua obra.

Isso diz muito sobre as interpretações das artes em geral, inclusive. Um texto, uma letra de música, um quadro, um filme e etc., ultimamente tem sido alvos de polêmicas à mínima chance. Críticos fazem julgamentos de quais obras, muitas vezes de forma seletiva. Usam de subterfúgios para "derrubar" ou "exaltar" as peças artísticas em torno das visões ideológicas (falsas ou não) para qualificar as obras.
Já comentei isso aqui, nas outras partes dessa série. E cada dia mais é latente que, os pontos de vista da bancada "lacradora" acabam interferindo (negativamente) nas artes, de forma a trazer tristeza para quem as admira e revolta para quem sabe que a arte é mais do que isso. Submetida ao juízo do conhecimento (e política, ideologias, relações sociais), tratar a arte pelo viés criterioso da "intenção do autor" pode ser empobrecedora. Sentimentos, não se explicam.

Dito isso (de novo, e de novo...), voltamos ao Pink Floyd que é o foco de nossa matéria. Ainda com Syd Barret como vocalista, temos um grande destaque da influência de Tolkien na arte destes músicos com o seu disco debut: faixa The Gnome (que poderão ouvir a seguir):


Os responsáveis pela banda eram Syd - guitarras, vocais, composição, Roger Waters no baixo e vocais, Richard Wright no órgão, piano, sintetizadores, violoncelo, e também vocais de apoio e Nick Mason na bateria e percussão, na ocasião do lançamento.
Na música, The Gnome os elementos primordiais que fez o Pink Floyd grandioso estão presentes: os indícios do rock psicodélico e uma atmosfera que sobrevoava a cena musical no fim da década de 1960 e boa parte da 1970 podem ser encontradas facilmente. 

A música conta a história de um gnomo chamado Grimble Grumble que usa uma túnica escarlate e um capuz azul esverdeado ("He wore a scarlet tunic / A blue green hood / It looked quite good...") A letra "saiu da cabeça de Barrett" e, reconhecidamente, se inspira na ficção/fantasia de J. R. R. Tolkien.

A gnome named Grimble Crumble
And little gnomes stay in their homes
Eating, sleeping, drinking their wine
(Um gnomo chamado Grimble Crumble / E pequenos gnomos que ficam em suas casas / Comendo, dormindo, bebendo vinho)

Aparentemente, Grimble Crumble é um "personagem" que Syd criou tendo como base, os hobbits. Uma das coisas mais bem colocadas por Tolkien à respeito destes pequenos seres era a vida simples desfrutando de boa comida, boa bebida e o conforto de casa. Esses personagens eram o que havia de mais representativo para o pessoal da contra cultura e o movimento hippie na década de 60-70. Sem luxo, sem guerras, numa vida rural, sem modernidades viram nesses personagens "metas de vida", fazendo visionários imaginarem comunidades inteiras como essas. Embora nessa canção, não mencione o fumo - também muito apreciado pelos hobbits - esses pequenos homenzinhos também gostavam de vinhos (além da boa e velha, cerveja). 
Em O Hobbit, os anões que acabam na casa de Bilbo e se esbaldam num banquete com produtos da dispensa do hobbit - queijos, carnes, pães e inclusive um bom vinho envelhecido da qual até Gandalf usufrui.
Em O Senhos dos Anéis, quando Gandalf aparece para a festa de 111º aniversário de Bilbo, muito tempo depois daquele primeiro encontro convidando-o para a aventura de reconquista de Erebor, Bilbo oferece à Gandalf, vinho. O tempo passou mesmo, pois o mago insiste em querer apenas chá. Uma cena que, nos filmes ficaram muito legais apesar do tom cômico e pastelão que alguns fãs torceram o nariz  (me refiro especialmente sobre a cena de Gandalf batendo a cabeça no teto da casa do Bilbo, na primeira adaptação para os cinemas, em O Senhor dos Anéis e a Sociedade do Anel de 2001). 

A música não aprofunda tanto no Grimble Crumble como promete no começo da canção ("I want to tell you a story / About a little man / If I can..."), muito por ser bem curta - apenas 2 minutos e 13 segundos.

He had a big adventure
Amidst the grass
Fresh air at last
Wining, dining, biding his time
And then one day - hooray!
Another way for gnomes to say
Oooooooooomlay
(Ele teve uma grande aventura / No meio do gramado / Ar fresco finalmente / Bebendo vinho, jantando, passando o tempo / E então um dia - hurra! / Uma outra forma para os gnomos dizerem / Oh meu)

Não há detalhes sobre a aventura que Crumble teve, nem nenhuma associação mais explícita que fosse em relação à algum personagem ou momento das ficções.. No ar fica aquela jeitão de pequenas músicas cantadas pelos contadores de histórias - que, por sinal, o professor Tolkien gostava muito de escrever e estão no meio de suas narrativas, quase como uma característica obrigatória de seus escritos. A canção de Floyd assim passa a ser então, muito divertida, para dizer o mínimo. 

E por falar em divertido, aviso: haverá outras partes dessa série. À princípio eram para ser apenas seis partes e hoje, finalizaria a série. Mas, ainda há bandas cujos músicos e letristas leram Tolkien e refletiram a suas criações em suas próprias obras. Algumas destas bandas, batizaram o grupo com algo relacionado à ficção do autor inglês e outras, compuseram discos inteiros sob a influência do mesmo. Então, em breve, retorno com mais uma matéria dessas aqui no Musique-se.

Abraços afáveis!

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