A influência da literatura de Tolkien na música - Especial Blind Guardian (1)

Para cada dez fãs de J. R. R. Tolkien, a metade deles já ouviram falar da banda alemã Blind Guardian. Mas para cada dez fãs do chamado “metal melódico”, nove certamente conhecem muito bem tanto a obra do professor quanto da banda. Ou pelo menos, suponho que sim. 

Conheci o Blind Guardian na mesma época em que estava imersa nas obras de Tolkien. Havia lido O Hobbit numa versão (péssima) de internet e ganhado O Senhor dos Anéis (volume único) da minha irmã não fazia muito mais tempo. Na ocasião, procurei corresponder com alguns fãs do Tolkien por (pasmem!) carta.
Adepta a esse modo de correspondência arcaica (aliás sinto muita falta disso!) uma das minhas amigas – a Liz – acabou me apresentando o Blind Guardian quando falávamos sobre nossos gostos musicais.
Em tempos de internet discada, o que dava para ter de acesso a qualquer tipo de cultura não é nem de longe comparável com a facilidade que temos hoje. Mas dávamos o nosso jeito. E assim, baixei umas músicas do Blind Guardian e passou a ser uma das bandas que eu mais gostava na adolescência. Quando tive oportunidade, até comprei os discos que encontrei deles, num shopping da cidade vizinha.

Embora hoje, não ouça Blind Guardian mais com tanta freqüência de quando tinha lá, meus 15 e 16 anos (eu os ouvia praticamente todos os dias), o Tolkien é presença rotineira sem interrupções. Quando concluí meu curso de graduação em História escrevi uma monografia e em 2017 defendi uma dissertação de mestrado (também em História) tendo o autor como fonte-base nas duas pesquisas. Fato curioso: Entre uma pesquisa e outra, cheguei a montar projetos e grupos de estudo sobre literatura fantástica que, infelizmente, não deram em nada. Num deles, quase chegamos à ponto de fazer acontecer. Montamos uma página e um grupo no Facebook. Meu colega parceiro de idéias e pesquisa, numa tarde que tomávamos café e discutíamos sobre as formas de divulgação, mandou uma que me deixou sem jeito. Eu queria divulgar com folders pelo campus da universidade e ele era contra: “vai aparecer cabeludo metaleiro fã de Blind Guardian e eu não quero lidar com esses caras”. Só me restou gaguejar e mudar de assunto.

Por isso, supus que a maioria dos fãs de metal eram mais simpáticos com a obra de Tolkien do que o contrário. Então, vamos conhecer sobre os Bardos!

Em 1985, Hansi Kürsch (vocais e baixo), André Olbrich (guitarra e vocal de apoio), Marcus Siepen (guitarra e vocal de apoio) e Thomas Stauch (bateria) formaram o Lucifer’s Heritage. A primeira demo do grupo não teve repercussão favorável, logo, em 1986, uma nova tentativa com dois outros integrantes, acabou atingindo o sucesso. Apesar disso, a formação original se restabeleceu e o nome  da banda foi mudado para Blind Guardian.
É necessário a compreensão dos chamados “bardos”: Um bardo, ou aedo, na Europa antiga, era uma pessoa encarregada de transmitir histórias, mitos, lendas e poemas de forma oral, cantando as histórias do seu povo em poemas recitados.
Na Idade Média, seriam designados de trovadores e as tradições musicais e literárias que transmitiram às gerações posteriores deram origem às canções de "gesta". Para quem já leu Tolkien pode ter encontrado alguma semelhança com essas canções na sua forma de escrita, e isso não é mera coincidência. Algumas dessas histórias foram transcritas no inglês antigo e Tolkien, como bom filólogo, conhecia dezenas delas e acreditava que fossem os melhores registros culturais ingleses antigos.

Logo de cara, em 1988 a influência da literatura de Tolkien e do tipo de histórias dos bardos criou raízes com o primeiro álbum de estúdio dos alemães: Battalions of Fear.


Na capa, temos o primeiro impacto sobre o interesse por fantasia e ficção que motivava os jovens alemães: o maior elemento de destaque é um suposto dragão ao fundo, que observa a luta de homens  numa espécie de tabuleiro de xadrez. Ainda, mais dois encapuzados sem rosto aparente, como espectros e um guerreiro medieval de braços cruzados completam a imagem.
O álbum parece simplório diante do que eram capazes em termos de som e conforme seriam conhecidos nos trabalhos futuros. No entanto, a faixa de abertura Majesty é uma das favoritas dos fãs e está freqüentemente nos setlists das apresentações ao vivo. Não só ela, mas outras canções do disco estão intimamente ligadas à Tolkien: Run of the Night, By The Gates of Moria e a faixa bônus (da remasterização de 2017) Gandalf’s Rebirth são referências da obra O Senhor dos Anéis. A primeira, Majesty, é inspirada na personagem Aragorn (embora não mencione o seu nome). Este é o homem cujo reino está perdido que vaga em busca de identificação e quando acontece o segundo conflito para salvar a Terra-Média do subjugo de Sauron, também é o personagem que luta como líder pela salvação de todos enquanto o Anel está prestes a ser destruído por Frodo. Em meio à letra, a influência é clara com passagens como: “Hunted by goblins no Gandalf to help” e “There exist no tales and hobbits are crying  for all”. Ouçam aqui.
O speed metal está escancarado, sem precisar de introdução.

Menos aparente é Run for the Night, pois a letra não menciona nenhum personagem dos livros. Cita, “com trovoadas e relâmpagos o senhor da escuridão está se apoderando / Da coroa do mundo todo” e as “suas criaturas irão me matar e envenenar a minha alma”, são os indícios que ligam à figura do  Senhor da Escuridão, isto é, Sauron. As suas criaturas que se “vê correndo pela noite” podem ser os Nazgûl – Espectros do Anel. Na mitologia, eles são os nove homens, reis que sucumbiram aos mandos de Sauron e se tornaram seus “servos”, como fantasmas vagantes pela Terra-Média e “caçadores” do Anel mágico e governante.



As instrumentais, By The Gates of Moria (que foi inspirada no compositor tcheco Antonín Dvořák, de tradição sinfônica) e Gandalf’s Rebirth falam por si só. A primeira menciona os portões de Moria. Após saírem de Rivendell, a comitiva que acompanha Frodo - o Portador do Anel - passa por alguns problemas, os caminhos são difíceis e eles lutam para fugir das ameaças. Em Caradhras, a situação se torna insustentável e eles decidem passar por baixo, pelas Minas de Moria, onde Gimli afirma que seu primo Balin, os receberá. Enquanto no filme A Sociedade do Anel (2001), Gandalf diz que quem decidirá o próximo caminho é Frodo, no livro a decisão é de todos. Ainda que os fãs encontre problemas nessa cena, o trecho é recortado e levemente modificado com um intuito interessante: a ênfase na importância de Frodo na narrativa. 
Os portões de Moria se iluminam com a luz do luar, e é uma das cenas mais bonitas do filme:


Em Moria também acontece uma parte importante da história: a “queda” de Gandalf numa luta contra uma espécie de demônio chamado de Balrog. Parênteses: Estes seres foram  Maiar – uma raça de magos como o Gandalf. Acabaram sucumbido em favor do primeiro Senhor do Escuro – criador também de Sauron – chamado Melkor. Na mitologia, Melkor era um dos mais poderosos dos Ainur, uma espécie de espíritos imortais. Foram os primeiros seres criados a partir do pensamento do Eru Iluvatar antes da criação de Arda, a Terra. Aguardem que tem mais coisa aí: Melkor se virou para o lado escuro (não da força, não confundam!), tomou uma forma “humana”, ficou conhecido como Morgoth e tornou-se o gente do mal no mundo criado por Eru.  

Voltando à Moria, Gandalf persuade o Balrog para que os demais da comitiva escapem de sua ameaça. Nas profundezas da mina, ele enfrenta o demônio, e consegue derrotá-lo.  No entanto, a exaustão fez com que o mago morresse em seguida, indo para os Salões de Mandos, onde estão os Valar.

Uma quantidade de nomes difíceis e histórias que dependem uma da outra. É. Mas aguentem mais um pouquinho, só para fechar essas pontas sobre os Valar. Eles eram entidades, os mais poderosos dentre os Ainur, e por isso vieram para Arda, finalizando o desenvolvimento material do planeta após sua criação pela Música dos Ainur (chamada de Ainulindalë) regida por Eru. 
Sim, Eru é como se fosse o nosso Deus na crença judaico/cristã. No Palácios de Mandos, este Vala permite a Gandalf que volte em um mesmo corpo para cumprir com a sua missão na Terra-média. Ele então renasce, como Gandalf, O Branco - que passa a ser o guia de parte da comitiva para o fim de O Senhor dos Anéis.


O Blind Guardian proporciona muitas referências para as histórias do Tolkien. E esse foi apenas, o começo de tudo, abordando o primeiro disco de estúdio dos caras e abrindo o especial da banda. Toda a discografia deles "conversa" com o autor inglês, seja diretamente com as suas obras, ou referentes à outras obras de fantasia, autores que tiveram Tolkien como livro de cabeceira, bem como menções à mitologias e lendas das quais o professor era grande entusiasta. 

Semana que vem, falaremos sobre os discos Follow The Blind (1989) e Tales From The Twilight (1990). Até! Abraços afáveis!

Comentários