A influência da literatura de Tolkien na música - Especial Blind Guardian (7)


Após o incrível disco, Nightfall in Middle-Earth, o sétimo álbum do Blind Guardian sugestivamente encaminhava a gente para um universo mais amplo, com outros temas. Inspirado no homônimo disco do Queen, A Night At The Opera (2002) não possuiria menção às obras do Tolkien, a não ser uma faixa bônus sobre Túrin Turumbar. 
Apesar disso, existem elementos no trabalho que atraem os leitores de Tolkien, de uma forma indireta. 

Antes de partirmos para uma breve resenha desse disco, é bom destacar a importância dele na discografia da banda: A Night At The Opera apelaria para uma fase muito mais progressiva do que os discos anteriores – causando estranhamento e até afastamento de seus fãs mais fervorosos por se identificarem muito mais com a proposta de power metal que os bardos produziram até então.
A primeira reação de que a influência progressiva estava na cabeça dos membros do Blind Guardian não surgiria ainda na capa do trabalho – que ainda fincava os pés e apostava numa arte com imagens fantásticas, medievais:


É preciso colocar o disco para tocar para perceber que, no que diz respeito ao som e letras, havia  uma abordagem diferente, especialmente mais abrangente sobre os temas nas letras de Hansi Kürsch. Isso fica às claras com a faixa de abertura Precious Jerusalem. Totalmente metal progressivo do que qualquer outra canção do Blind Guardian, a letra trata dos últimos dias de Jesus Cristo, no deserto.


O resultado do flerte com o metal progressivo estava longe de ser uma tentativa frustrada. A canção era empolgante e abria a mente em curiosidade para para conferir as demais.

Sadly Sings Destiny, a quarta faixa do álbum retoma a temática bíblica: baseada no aspecto religioso do Messias no Antigo testamento, conta a crucificação de Jesus pelo ponto de vista de um personagem que relutantemente ajuda no cumprimento da profecia, fazendo certas coisas como a construção da cruz e tecelagem da Coroa de Espinhos.
Apesar da mudança de sonoridade - que não era de todo mal - o que os músico escolheram manter para a banda funcionava bem: a forma de contar histórias nas letas não falha.


A música Battlefield trás um adequado retorno às origens: com linhas de guitarras rápidas e com corais colaborativos, a letra, era uma "especialidade da casa". Inspirada na "Canção de Hildebrando" - um conto épico escrito em alto alemão do século IX,  relata uma história sobre um pai e filho que se encontram em um duelo de morte.
A quinta faixa também caminha em territórios conhecidos da cultura alemã: intitulada The Maiden and the MinstrelKnight a sua letra é baseada em um episódio da história "Tristan und Isolde" - ou "Tristão e Isolda" - , uma ópera de três atos escrita por Richard Wagner, indo aos palcos em junho de 1865, na cidade de Munique.

A faixa três, intitulada Under The Ice traria conexões, pela primeira vez, com uma história muito conhecida de todos nós: a Ilíada de Homero, focando em Cassandra - uma dos dezenove filhos do rei Príamo e da rainha Hécuba de Tróia; ou seja, irmã de Heitor e Páris.
Sua presença é importante na narrativa de Homero pois, é uma personagem de destaque na Guerra de Tróia: é Cassandra que prevê e alerta à sua família e o povo sobre as destruições vindouras do conflito. Desacreditada e considerada louca, devido a um desentendimento com o deus Apolo, que a amaldiçoou, o povo de Tróia não a leva a sério, mas ela estava correta já que sua cidade-estado é vencida e destruída pelos gregos.
A canção (ouça aqui) trata do que aconteceu depois da Guerra de Tróia, Oresteia – uma trilogia de peças teatrais trágicas de Ésquilo. Nessas tragédias, Cassandra é trazida aos gregos por Agamemnon como troféu de guerra.
A última música, a que fecha o disco, bebe da mesma fonte de épicos gregos: And Then There Was Silence fala sobre as próprias visões de Cassandra da Guerra de Tria. É inspirada na Ilíada (que narra os acontecimentos decorridos no período de 51 dias durante o décimo e último ano da Guerra de Tróia, conflito empreendido para a conquista da cidade-estado, cuja gênese teria se dado na ira de Aquiles) e Odisseia (o poema oral – tal como Ilíada - é uma seqüência deste, e relata o regresso de Odisseu - ou Ulisses -, herói da Guerra de Tróia e protagonista que dá nome à obra). Ambas são  atribuídas à Homero. Além delas, outra história, a Eneida (narrativa sobre a saga de Eneias, um troiano que é salvo dos gregos em Tróia, que viaja pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica. Seu destino era ser o ancestral de todos os romanos), creditada à Virgílio é também base para a letra da faixa final de A Night At The Opera do Blind Guardian.

Para além destas, encontramos temas "filosóficos" e históricos, com uma postura quase: Wait for an Answer (aqui)é uma análise da propaganda nazista e retórica ao povo alemão nos anos precedentes à Segunda Guerra Mundial. É até impossível não encontrar na letra, algo que expresse sentimentos confusos de nossa atualidade:

Don't be a fool
Stop spinning around
Spinning around
You're right it ain't safe here
Start using your brain
Your brain
("Não seja idiota / Pare de rondar por aí / Rondar por aí / Você está certo, não é seguro aqui / Comece a usar o seu cérebro / O seu cérebro")

Age of False Innocence fala sobre Giordano Bruno, filósofo do século XVI que desafiou os dogmas religiosos de sua época e contestou o establishment da Igreja Católica. Pagou com a vida por isso,  tendo sido condenado à fogueira na Inquisição. Começando como uma simples balada, a música toma um ar épico espetacular depois da primeira estrofe. É certamente a minha favorita de toda a obra: 



A faixa Punishment Divine possui uma letra bem mais subjetiva e mostra o quão sagaz é o vocalista e compositor Hansi: ela aborda a "queda" de Friedrich Nietzsche em insanidade, onde ele se imagina sendo julgado por uma corte de santos.
Esse filósofo alemão escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo. "A lei da natureza ao invés de Deus no céu" da letra indica uma das críticas de Nietzsche: a morte de Deus. Nietzsche usou essa frase para expressar sua ideia de que o Iluminismo havia eliminado a possibilidade da existência de Deus. No entanto, os proponentes da forma mais forte da teologia da Morte de Deus usaram a frase em um sentido literal, dando um significado de que o Deus cristão, que existia na mentalidade da Idade Média, sobretudo, deixou de existir com a expansão das ideias iluministas.

Aquele elemento fantástico que fazia parte da "personalidade" da banda se mostra com The Soulforged. A letra é sobre as crônicas do mago Raistlin Majere na "Dragonlance" saga. "Dragonlance" é um universo fictício criado por Laura e Tracy Hickman e expandido por Tracy Hickman e Margaret Weis sob a direção da TSR, Inc. em uma série de romances de fantasia e que originou também em RPG.
Assim como o legendarium de Tolkien, o mundo fictício "Dragonlance" de Krynn contém vários personagens, uma extensa linha do tempo e uma geografia detalhada. A história de Krynn também consiste em eras (cinco, para ser mais exata). Os romances e produtos de jogos relacionados são ambientados principalmente na quarta era, "The Age of Despair". Os "Heróis da Lança", criados por Weis e Hickman, são os protagonistas populares da trilogia "Crônicas". Junto com o mundo dos "Reinos Esquecidos de D&D", "Dragonlance" é um dos mundos compartilhados mais populares da ficção.

Por fim, não poderíamos deixar de comentar: Harverst of Sorrow é a faixa bônus do disco, mas, apesar de ter título idêntico, não se trata de cover do Metallica. A canção, totalmente acústica, teve uma remasterização em 2007, e é inspirada em Túrim Turambar, um personagem de Tolkien cuja história é bem trágica. Sua história é contada em "Os Filhos de Húrim" e relata os fins de dois de seus filhos: Túrim e Nienor Níniel. Túrin, o herói trágico da narrativa, vem de uma família amaldiçoada pelo primeiro Senhor do Escuro, Melkor (ou Morgoth, se preferirem). No curso de suas tentativas frustradas de desafiar a maldição, Túrin arruinou várias fortalezas de homens e elfos, e também a dele e de sua irmã Níniel, que pensava estar morta.
O trecho abaixo dá um "spoiler" do que acontece entre os irmãos na história:

She is gone
Leaves are falling down
The tear maiden will not return
The seal of oblivion is broken
And a pure love's been turned into sin
("Ela se foi / Folhas estão caindo / A donzela das lágrimas não retornará / O selo do esquecimento foi quebrado / E um amor puro se transformou em pecado")

Talvez um pouco esgotados de terem trabalhado muito com literatura fantástica de um dos maiores escritores do gêneros, Hansi e companhia optaram por uma evolução em termos sonoros e também temáticos para A Night At The Opera, sem abandonar as fórmulas que deram certo. A fantasia pode ter sido deixada um pouco de lado, assim como um pouco do que admiravam do legado de Tolkien. Eles passaram a explorar outros temas, e os "mitos" antigos ganhariam mais força entre eles, bem como, assuntos mais profundos.
Em 2006, Hansi, André Olbrich, Marcus Siepen e Frederik Ehmke lançariam A Twist in The Myth. É sobre esse trabalho que focará o nosso próximo "papo" sobre o Blind Guardian e os "ensinamentos" que obtiveram a partir da literatura de J. R. R. Tolkien.

Abraços afáveis, fiquem em casa e musiquem-se!

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