Necessidade básica - Amigo da Arte (2014) - Alceu Valença

A obra de Alceu Valença é recheada de discos inesquecíveis, fantásticos e antológicos.
Desde Molhado de Suor, com seu som áspero e pesado sem deixar de ser poético, passando pelo blockbuster Cavalo de Pau com seus hits, a delicadeza dos arranjos acústicos de Sete Desejos até seus últimos discos independentes.
Tudo é impecável sendo quase impossível apontar um preferido e, apesar da quantidade, - são 32 discos incluindo sete ao vivo, três onde revisita e repagina canções e uma trilha sonora – todos são diferentes e excelentes.
Os números excluem coletâneas.
Mas há entre todos estes um pelo qual tenho um carinho especial.
Talvez um dos menos comentados, este disco descreve e ilustra o carnaval pernambucano, roteirizando as faixas para contar o que se canta e dança durante os dias da folia no circuito Olinda/Recife.
Amigo da Arte, gravado no ano 2000, mas só lançado em 2014 é sublime.
E para quem já esteve nas cidades de Olinda e do Recife, escutar este disco chega a doer de vontade de estar lá novamente.
Seja no carnaval ou não...

A grande maioria das músicas já haviam sido gravadas por Alceu em algum ponto de sua carreira e ele conta que posicionou as canções no disco de forma que ouvinte tivesse a visão de como os festejos carnavalescos mexem com a vida e a alma do pernambucano.
Por suas faixas desfilam agremiações, blocos, caboclinhos, maracatus e afins.
Assim, a canção “Olinda” abre o disco (gravada originalmente no disco Estação da Luz, de 1985) apresentando a cidade antes do início da festa, ainda em paz e com “a calma dos mosteiros da Índia”, bucólica.
Sua audição transporta o ouvinte ao Alto da Sé de Olinda e à sensação que se tem ao olhar o mar lá de cima.
Não por acaso, é a imagem da capa do disco, um projeto gráfico de João Victor Pessanha sobre pintura belíssima da artista plástica olindense Mariza Lacerda que reproduz o convite do casamento de Alceu com Yanê Montenegro.

Porém, isso dura apenas a primeira faixa já que daí em diante começa a festa e ouvimos maracatus, cocos, levadas de caboclinhos (principalmente na faixa “Nas Asas de Um Passarinho”)
A sequência com “Frevo da Lua”, “Frevo Dengoso” e “Homem da Meia Noite” que homenageia esta verdadeira instituição do carnaval recifense, representa o auge da festa onde milhares de pessoas invadem as ruas de Olinda e do Recife Antigo dançando e cantando.
Respira-se um pouco com a já citada “Nas Asas de Um Passarinho” e na suave e delicada “Amigo da Arte” para depois, novamente, o batuque pesado do “Maracatu” (original do disco Cavalo de Pau, 1982) e o forró “Sou Eu Teu Amor” (de Jackson do Pandeiro) dar continuidade ao carnaval.
A partir da nona faixa o carnaval se torna saudade instalada na memória e Alceu ao lado da cantora portuguesa Carminho, nos presenteia com a linda “Recife”.

O roteiro vai chegando ao fim e a quarta-feira de cinzas, representada pela canção “Sonho de Valsa” (também do disco Estação da Luz) ainda que de forma animada, mas cheia de saudades põe fim aos festejos.
O disco tem uma atmosfera envolvente, como um filme, como um disco conceitual que transporta o ouvinte para dentro dele e a repetição em loop do último verso faz ecoar na cabeça a sensação de estar em um sonho.
O disco rendeu uma turnê muito elogiada que se estendeu até 2019 e levou um pouco da magia do carnaval pernambucano à plateias do país todo.
Amigo da Arte foi produzido por Paulo Rafael sob direção artística do próprio Alceu e é dedicado ao poeta Carlos Fernando, parceiro que, segundo Alceu, o fez mergulhar no frevo.

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