A influência da literatura de Tolkien na música - Especial Blind Guardian (8)


Quatro anos após o lançamento de A Twist In The Myth os bardos do Blind Guardian retornaram com o seu oitavo disco de estúdio sob o título de At The Edge of Time.
Duas versões do álbum podem ser encontradas: uma, com 10 músicas inéditas e outra com um cd bônus em formato digipack, com 6 faixas, sendo uma delas, um cover de John Farnham, mais um videoclipe Sacred e um documentário em estúdio - A Journey to the Edge of Time.


O escritor Michael Moorcock estava um pouco esquecido nos discos do Blind Guardian, mas marca retorno no álbum de 2010, na faixa Tanelorn – a cidade fictícia da série Eternal Champion. No quarto álbum da discografia da banda alemã, Somewhere Far Beyond (1992), duas canções inspiradas nesses romances de fantasia já haviam dado o ar da graça: Journey Through The Dark e The Quest of Tanelorn.

Duas obras do poeta inglês do século XVII, John Milton são inspirações das letras de duas músicas de At The Edge of Time. Ambas tratam de questões muito longe de serem ficcionais ou simplesmente, fantasiosas – filosofia política e filosofia cristã.  A primeira obra, The Tenure of Kings and Magistrates, Milton defende o direito das pessoas de executar um soberano culpado, seja tirânico ou não. Versa sobre a formação de comunidades, apresentando um tipo de constitucionalismo, mas não um antimonarquismo definido. A teoria do intelectual é bem mais simples que isso: como as pessoas entram em comunidades, elas elegem reis; assim ele explica qual deve ser o papel do governante (e o que o definiria como tirano) e porque é necessário limitar o poder de um rei por meio de leis e juramentos. Parece bom, não? Mas não tratemos de política, pois esse assunto nos dá nos nervos, não é? Limpamos a nossa mente com a música do disco, cuja a letra trata dessa obra supracitada: Curse My Name.


Num delicioso clima de taverna, os bardos seguem fazendo música no melhor jeito que sabem. Com ela, já temos um boa ideia do quanto o disco faz a gente "viajar" no tempo. A gente se sente mesmo, um camponês medieval, mesmo sendo brasileiro e nunca ter experimentado a Idade Média, tal como nossos colonizadores experimentaram. 

A segunda obra de Milton é Paradise Lost, um poema épico em versos, publicado em 1667, contemplando dez livros com mais de dez mil linhas. Uma segunda edição foi publicada em 1674, dispondo de doze livros (na mesma forma da Eneida de Virgilio) contém também pequenas notas.
O poema diz respeito à "Queda do Homem" na Bíblia, isto é, a tentação de Adão e Eva provocada pelo Diabo e tendo como resultado uma punição divina: a expulsão do Jardim do Éden. O objetivo de Milton, declarado no livro I, é "justificar os caminhos de Deus para os homens". O Blind Guardian usou esse tema para compor a música Control The Divine - num jeitão muito conhecido da banda, com uma levada muito próxima ao metal melódico.

Outro autor é inspiração para duas outras faixas do disco de 2010 ainda marca presença: conhecido pelo pseudônimo de Robert Jordan, foi um autor americano de fantasia épica. Seu livro mais conhecido, The Wheel of Time – aqui no Brasil, traduzido como A Roda do Tempo – foi lançado em 14 volumes no período de 1990 a 2013. Os volumes de Jordan não são curtos (cada um tem pelo menos 500 páginas) e notadamente possui um detalhamento do mundo imaginário "subcriado" e um grande número de personagens que é impossível não remontar a sua obra às de J. R. R. Tolkien – uma inspiração de muitos dos autores de fantasia atuais.
Embora tratasse de assuntos filosóficos, explicitamente expondo metafísica e dualismo, além de ter referências cristãs de formas talvez bem alegóricas – ação de escrita que Tolkien não compartilhava – a fantasia de Jordan atraiu Hansi Kursch e cia. para duas boas canções: a rápida e intensa Ride Into Obsession, com uma introdução aos personagens principais, o "Dragon Reborn" e "Dark Lord Ba'alzamon", e a música que fecha o álbum, título das séries de Jordan: Wheel of Time
Ambas casam totalmente com o título do disco que fala de tempo, embora não seja conceitual. Mais uma vez, ouvindo a música, a gente se imagina em eras completamente diferentes da nossas, lugares que nunca visitamos:


Por falar em séries, na obra dos alemães está presente o maior flerte com a literatura de Tolkien que, rendeu muito mais grana e entusiastas pelo mundo todo, graças à série de produção da HBO - Game of Thrones - baseada nos escritos de George R. R. Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo

Permitam-me que eu seja polêmica: sendo grande fã de Tolkien, e desde a infância me interesso por dragões, a série da TV me chamou atenção - nela teria, três deles, domesticados por uma moça - e então, me voltei aos livros. 
Até hoje não compreendi as comparações, nem acho que elas sejam justas. Achei o primeiro livro de George R. R. Martin (esse "R. R." deveria ter me alertado para a intenção de ganhar holofotes) pouco inteligível. Não sei a edição e a tradução são mal elaboradas, mas achei muito difícil de entender a narrativa – algo que nunca tive dificuldade em relação aos livros do Tolkien (que o leu, sabe como é o seu estilo). Acabei me vendo como uma leitora preguiçosa, impaciente com o primeiro volume de As Crônicas de Gelo e Fogo, incapaz de imaginar as cenas e forçando para chegar ao fim.
A série da TV (que acabou no ano passado) tornou-se um o refúgio para "entender" minimamente a história, mas desde que acompanhei as temporadas, não voltei a reler os livros – parados na prateleira, aguardando uma nova tentativa.

A série não foi muito melhor do que pode estar proposto nos livros já que teve um final pouco empolgante, porém, lógico com o que vinha sendo construído até ali. Se todo mundo estava prestando atenção, as cartas estavam dadas. Tudo teve um sentido, embora, foi frustrante para a maioria dos espectadores que queriam coisas surpreendentes, reviravoltas ou apenas finais felizes. Isso mostra para mim a fraqueza da história que, por um alarde de tendência contemporânea, investiu em temas polêmicos e violentos para atrair público, e estes queriam alguma coisa que os chocasse ou os surpreendesse. 
Na literatura, a história ainda não teve seu fim oficial. O autor, inclusive, não contribuiu com as temporadas finais da série da TV (se não me engano, acompanha os livros até a quarta temporada). Embora tenha vendido os direitos,  anda em círculos (faz tempo!) para apresentar mais dois volumes conclusivos para sua própria obra, não sem claro ter insistido que a TV teria feito mudanças ruins e por isso, pouca gente teria gostado do final – algo que ele garante que não acontecerá quando conferirem os livros. 
Será? Pois, eu duvido. Se assim fosse, ele já teria entregado os livros para a editora e rachado de ganhar dinheiro dos frustrados com o final da TV – e que são muitos, embora sem muita razão de ser.

Tolkien sempre foi contra adaptações de suas obras. Vetou roteiros até dos Beatles. Perfeccionista, sabia que haveria mudanças na narrativa para contemplar gostos específicos e atender o mercado cinematográfico - que exige outras coisas que a literatura não tem obrigação de atender - poderia ser excruciante. Tentar modificar as coisas que ele demorou anos para construir e encaixar a seu modo e gosto, soava como uma afronta. Era difícil que alguém tivesse o esmero que ele teve, e trabalhar nisso, ela achava pouco provável - afinal, ele faria roteiros enormes, detalhados... 

Boa parte de seus descendentes condenaram as adaptações de Peter Jackson entre os anos de 2001 e 2003 para O Senhor dos Anéis, e as releituras fazias sentido para a fluidez do longa, mas era fato que o livro era muito mais rico. Mais tarde, entre 2012 e 2014, lançou a adaptação de O Hobbit e foi aí que entendemos o quanto Tolkien estava coberto de razão. As mudanças foram drásticas, pois o sucesso da trilogia anterior tinha feito o diretor ganhar um certo "status de especialista". Renomado e com Oscars pela primeira trilogia, o diretor se permitiu umas "licenças poéticas" na segunda trilogia que feriram o legado de Tolkien a ponto de temermos qualquer projeto de adaptação de seus livros de agora em diante. A chance de apresentarem um "elfo homoafetivo" numa das histórias é bem grande, já que personagens femininas e guerreiras foram inventadas e empurradas goela abaixo, e o populacho aplaudiu, nos filmes. Na última trilogia também teve romance onde não existiu para atrair o público que gosta dessa inserção. Inútil para a narrativa, é sem propósito e mal protagonizada por parte da atriz escolhida. Evangeline Lilly ficou caricata, e pouco convincente. 

George R. R. Martin sempre disse que se inspirou em Tolkien para escrever as suas Crônicas de Gelo e Fogo. Fã do autor inglês, ele teria sido bem sucedido se não fosse por um mísero detalhe: não ter tido disciplina. "Não havia outra fantasia tão boa desde as de Tolkien", disseram os críticos e o cara cresceu. A internet foi ao delírio e logo, o interesse de alguma mídia se voltaria para adaptação. Certa vez, li um indivíduo comentar que os livros de Martin – e por extensão, a série da HBO – eram melhores que as do professor Tolkien (e os filmes), pois havia - em abundancia - aquilo que faltava em O Senhor dos Anéis: nudez e sexo.
É melhor nem comentar.

Mas o Blind Guardian se atraiu pela história de Martin antes do oba-oba televisivo e isso rendeu duas boas canções ao disco, por incrível que pareça: as faixas War of theThrones e A Voice in The Dark


Nesta música, a letra conta a história de Bran Stark, um personagem-chave da narrativa de Martin. Na época do disco e do vídeo, um ano antes da estréia da primeira temporada da produção da HBO. Quem conhece o final da série da TV, já entendeu porque "personagem-chave"... Então não dá para reclamar do final como "frustrante" ou bobo, sacaram?
Esta faixa foi o primeiro single do álbum, e é um pequeno retorno ao estilo original do speed metal da banda, que havia caminhado nos trilhos do metal progressivo com os dois álbuns antecessores à At the Edge of Time.

Destaques especiais para fechar mais um capítulo desse especial: Inspirado na mitologia nórdica, especialmente nas Valquírias*, bem como na percepção do tempo, Valkyries é uma belíssima música que traduz o potencial da obra como um todo.
Além disso, o cd bônus trás uma versão cover de You’re The Voice de John Farnham (ouça a original, aqui) configurando como um dos melhores covers que o Blind Guardian já produziu em sua carreira, apesar do começo estranhado pelos seus fãs mais conservadores do estilo speed metal alemão.


Na próxima postagem, iremos falar do disco Beyond the Red Mirror, disco de 2015 do Blind Guardian, antecessor do mais recente trabalho dos bardos,  Legacy of the Dark Lands, lançado no ano passado. 
Até!

(*) Valquírias: na mitologia nórdica, são deidades femininas menores que serviam Odin sob as ordens de Freya. O seu propósito era eleger os mais heroicos guerreiros mortos em batalha e conduzí-los ao salão dos mortos, Valhalla, regido por Odin.

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