O décimo álbum de estúdio do
Blind Guardian demorou um pouco a ser lançado: gravado em 2014 e lançado em
2015, chegou ao público cinco anos depois de At the Edge of Time. É o primeiro
disco com Barend Courbois, que substituiu o então baixista (oficial em 1995)
Oliver Holzwarth.
O Beyond The Red Mirror é mais um
álbum conceitual, e uma "sequência" do Imaginations From The Other Side de
1995. Assim como os álbuns anteriores,
trabalha fortemente com fantasia e ficção científica, marcando um retorno às
raízes de forma bem eficaz.
O disco parece próprio para os
entusiastas de RPG pois, além de tratar de temas corriqueiros dos jogos de
interpretação, tem uma base sólida de história sendo contada – o que sempre foi
algo realmente muito divertido por parte dos músicos do Blind Guardian, em
especial, o letrista e vocalista Hansi Küsch:
A ligação com Imaginations Fron
The Other Side de 1995 é ideal para entender o álbum de 20 anos depois, em
particular a And the Story Ends, onde ouvimos sobre um garoto em pé na frente
de um espelho, e esse garoto deve dar um pulo e tornar-se o escolhido em um
mundo diferente.
Em 'Imaginations' (inclusive na
capa, como pode se ver acima) representa a existência de dois universos diferentes que são descritos -
um é o mundo de fantasia arturiano, e o outro tem muitas semelhanças com o
nosso mundo, e ao fim do álbum "ficou no ar" se garoto teria ou não dado o
salto. Ele era apenas um garoto e por essa razão, poderia estar indeciso. Assim
Hansi revisitou a cena em particular decidiu que os dois mundos "opostos", um
mágico e um "real" sofreram mudanças drásticas em uma espécie de catástrofe - documentado
no Beyond of Red Mirror. Acompanhamos no trabalho mais recente que aquele
garoto se tornou homem vinte anos depois, e agora está em uma “nova” busca:
recuperar a sua memória e voltar à outra dimensão, aquela fantástica.
Obviamente, essa outra dimensão está além do 'Red Mirror', que é o portal final
entre esses dois universos. É como um Alice através do espelho, só que
relacionado à um mundo medieval semelhante ao arturiano, e um mundo real não
tão místico assim.
A pausa entre o At the Edge of
Time e este trouxe muitos pontos positivos ao Beyond The Red Mirror. A obra
recebeu boa crítica por abordar um mundo mágico e reconquistou fãs que haviam
se afastado dos bardos pelo tempo em que flertaram fortemente com o rock
progressivo. Beyond the Red
Mirror é notável: dividido em seis atos - I. The Cleansing of the Promised
Land, II. The Awakening, III. Disturbance in the Here and Now, IV. The Descending of the Nine, V. The
Fallen and the Chosen One e o final VI. Beyond the Red Mirror, - resumem uma
boa história subcriada, cheia de simbolismos e dramas.
Na primeira parte, as duas
canções que abrem o disco, são bombásticas: a longa The Ninth Wave e Twilight
of the Gods. The Ninth Wave foi considerada
uma das favoritas de Hansi Kursch, principal letrista dos bardos. Em pouco mais
de 9 minutos, a canção explora uma introdução da história de um garoto que se
tornou homem, recheada de corais e muito bem elaborada.
Já Twilight of the Gods é
seguramente uma das melhores músicas do disco e vou deixar o vídeo como forma
de "falar por si":
Na segunda parte, mais duas
faixas: Prophecies e At the Edge of Time. No terceiro ato, mais duas: Ashes of
Eternity e The Holy Grail, referindo efetivamente ao mundo arturiano. Na
quarta, temos The Throne e na quinta parte Sacred Mind e Miracle Machine.
Pode-se inferir que a canção
Sacred Mind é sobre Xanadu, o grande estado de propriedade do personagem-título
do filme Citizen Kane (Cidadão Kane), de 1941, dirigido e interpretado por
Orson Welles. Porém, há outra interpretação um
pouco mais a cara do Blind Guardian: Sacred Mind poderia ser uma referência a
Shangdu, a capital do império de Kublai Khan, particularmente como referenciado
no poema de Samuel Taylor Coleridge, Kubla Khan.
Coleridge foi um poeta inglês do
século XVIII e que já influenciou bandas do metal – entre elas o Nightwish. O líder da banda, Tuomas Holopainen usou o poema místico, Christabel de Coleridge para compor
uma passagem na música Beauty of The Beast do álbum Century Child (2002). Além deste exemplo, um dos contos de seu
Baladas Líricas (1797-1798) chamado originalmente de The Rime of the Ancient
Mariner foi adaptada por Steve Harris para compor o álbum Powerslave (1984)
como faixa de encerramento do quinto álbum de estúdio do Iron Maiden. Ambas, canções excelentes!
Mas não só isso. Em um ensaio
intitulado Sobre Histórias de Fadas, o autor favorito do Blind Guardian, J. R. R. Tolkien reflete -
enquanto acadêmico - sobre o literatura fantástica, tomando pontos como
criação, estilos e até mesmo recepção desse tipo de literatura. Em um dado
momento ele questiona uma visão crítica comum do gêneros ficcionais, de propor uma reação
peculiar por parte do leitor: a suspensão da credulidade.
Ao contrário do que se poderia
admitir Tolkien não segue a ideia de que a "suspensão da credulidade" seria o
elemento-chave para a interpretação da literatura fantástica. Neste aspecto, percebemos
que a concepção tolkieniana de
literatura não segue todos os elementos da tradição inaugurada pelo romantismo,
movimento na qual Coleridge esteve inserido. Para Tolkien, não é necessário essa
reação de "faz de conta" com contos de fadas e por isso, mesmo sem citar
Coleridge, contrapõe a assertiva do poeta da "suspensão da credulidade" que
alguns críticos faziam funcionar inclusive para os chamados "contos de fadas", vinculando ainda em relação ao sentimento de escapismo.
O que se estabelece aí é
justamente na suspensão da relação entre o que é "real" e o que é "ficcional",
que é própria de uma discussão a respeito da estética em hierarquizar estas
instâncias, sobrepor uma como "melhor" que a outra, especialmente no meio acadêmico. Essa questão de "não hieraquizar gêneros" talvez
esteja mais próxima do proposto por Immanuel Kant e dos românticos alemães do
que aquela abordada por Coleridge, mas é claro que nem sempre foi assim, nas
inflamadas discussões acadêmicas sobre função e crítica das artes, sejam elas,
literatura, música ou até artes plásticas.
Tolkien não achava que fosse
necessário "fingir que acredita" no que lê para que uma narrativa fantástica funcionasse com o
leitor. Da mesma forma, não é necessário acreditar nas interpretações e
intenções de músicos sobre suas peças, pode se expandir o entendimento e absorção delas, sem que isso seja algo nocivo. Limitar as interpretações das obras de
arte para cada indivíduo que toma contato com elas, era para Tolkien (e é para
mim) uma ação indevida e acrescento, de muita soberba. Arte é arte, é estética
e não existem como suporte da retórica. Em
primeira instância, a arte tem que ser bela no particular, traduzir de alguma
forma, sentimentos que, assim que mostradas para o público, imprimem sensações
diferentes para eles. Se a obra sai do particular e consegue ser
universal, ela alcança o seu efeito atemporal e pode passar a traduzir diversas
experiências e referências. Mas ela não poder ser limitada por um discurso, que
defenda ou condene alguma ação a partir de um momento histórico ou de uma sociedade.
Alegoria é um tanto problemático,
ainda mais hoje, com as comparações (retrógradas, diga-se) que as pessoas fazem
com políticos obtusos e personagens de fantasia, ou quando inferem supostos
aspectos de racismo, sexismo ou homofobia na construção de caracteres. Os
autores das obras, se ainda estiverem vivos, deveriam pedir que extraíssem o
conceito, ideia ou noção dos seus objetos artísticos, mas que não vinculassem os
símbolos contidos neles com figuras reais - patéticas - como políticos, por
exemplo. O real é sempre pior que a ficção e esta, enquanto tal nem pode se
defender de tal "acusação" que normalmente, quando acontece, acho medíocre. A arte perde seu
encanto quando o público - com o aval do seu criador - estampam essa propaganda
política mesquinha nas obras.
(Quanto à etnia, gênero e sexualidade, é um campo
espinhoso que prefiro não entrar com os dois pés. Penso que, gostar de uma música,
um quadro ou um personagem de livro ou filme independe de referências de gênero
ou cor de pele. Para não levantar reações desentendidas dos apoiadores dos movimentos sociais, me
limito a esse esclarecimento, esperando que isso tenha bastado).
O "faz de conta" não é necessário
para "saborear" devidamente as músicas do Blind Guardian. Quantas vezes não
dizemos aqui que, alguma música foi inspirada num romance de fantasia ou ficção
científica pouco conhecido? Isso não tirou o brilho de qualquer uma delas,
certo? Por assim dizer, mesmo que as relações com o Tolkien não estivessem
explícitas, algumas de suas "liberdades poéticas", acompanham a banda, desde o
começo. E isso não fugiu do décimo álbum dos bardos.
O último ato de Beyond the Red
Mirror, trás uma única faixa de conclusão: Grand Parade. O disco ainda conta
com outras partes, como atos ou partes de bônus: IV. The Mirror Speaks com Distant Memories, colocado entre as duas músicas
do capítulo III do álbum, e assim, nessa versão com os bônus, The Holy Grail
acaba pertencendo ao capítulo seguinte V chamado de Disturbance in the Here and
Now (Reprise). Há também o capítulo IX. Damnation, com a música Doom, se
tornando assim, uma faixa de epílogo.
Doom foi originalmente escrita para
Nightfall in Middle-Earth (1998), outro álbum conceitual totalmente inspirado
no livro O Silmarillion de Tolkien. A versão deste álbum tem letras ligeiramente
reescritas para poder se encaixar melhor no conceito de Beyond the Red Mirror. Lá
no disco de 1998, descrevia o personagem Húrin amaldiçoado por Morgoth, e no
disco de 2015 os vestígios dessa ideia apareceram aqui enquanto ainda mostravam
o que aconteceu depois de Grand Parade. Doom também aparece na
edição deluxe de Nightfall in Middle-Earth em 2018 com a letra original.
Semana que vem, trataremos do
último álbum lançado pelo Blind Guardian, o Legacy of the Dark Lands, lançado
em 8 de novembro do ano passado. Resenharemos o disco com alguns meses de
atraso , mas não sem demorar mais, hehehe... Até!
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