Discos para ajudar na quarentena (10): Prequelle - Ghost

Parece muito insensível de minha parte, mas em tempos de pandemia não consigo pensar em outro disco para reger  - por extensão, ajudar a amenizá-los - os nossos medos e aflições nesse período tão difícil que passamos. E esse disco é senão o Prequelle da banda sueca, Ghost.

Uma das melhores coisas que já aconteceu no meio musical internacional, e seguramente a melhor banda das terras escandinavas dos últimos 10 anos, o Ghost não é necessariamente uma banda convencional.
Encabeçada por Tobias Forge, o projeto iniciou-se me 2008, com as identidades de seus músicos escondidas. O vocalista (hoje sabemos que se trata do próprio Forge) encarnava um Papa "diabólico", chamado de Papa Emeritus. Para cada disco, um Papa Emeritus: o  I - Opus Eponymous (2010), o II - Infestissumam (2013), III - Meliora (2015). Os instrumentistas, eram os Namaless Ghouls, e possuíam símbolos que os diferenciavam – Fire, Earth, Air Water e Éter. Essa configuração durou até meados de 2017 quando um dos ex-guitarristas decidiu processar Forge e a tal ação judicial veio à tona revelando quem eram os seus membros.

Forge venceu os processos, que consistiam questões financeiras, usos da criatividade musical e etc. e conseguiu provar que todo o conceito, desde a formulação do Ghost (nome, músicas, composições, produção) era seu, até mesmo a parte de contratos (músicos de álbum e músicos de tour estavam cientes de suas obrigações pré estabelecidas). Ele tocou o projeto com outros músicos (ainda que fazendo o teatro com personagens e seguindo uma "historinha macabra" em que consistia a morte de papas) e ressurgiu com outro personagem o aspirante a Papa, o Cardinal Copia, para a tour e divulgação do disco Prequelle. Agora, "habemus papa", já que ele se tornou, finalmente, o Papa Emeritus IV!

Prequelle é o quarto álbum de estúdio de Ghost, lançado em 2018 e o primeiro a ser gravado desde que o líder da banda foi oficialmente confirmado como Tobias Forge.
Ele mesmo afirmou que, ao contrário do "procedimento muito, muito luxuoso e estúpido" usado para gravar o álbum anterior Meliora, a intenção do disco seguinte era "simplificar as coisas". E o resultado é tão primoroso quanto o seu predecessor.
A maior parte da gravação foi feita apenas por ele e Tom Dalgety - graças em parte ao fato de Dalgety ser capaz de projetar o álbum, além de produzi-lo. Quando eles precisavam de um baterista ou pianista por exemplo, eles simplesmente chamavam um músico de sessão que saía ao completar sua parte. Isso tornou todo o processo "muito relaxado" e "focado", como teria afirmado Forge.

Em 31 de março de 2018, um vídeo intitulado "Ghost - Chapter One: New Blood" foi lançado no canal Ghost no YouTube como um anúncio para o álbum e para o novo personagem que Forge tocaria, o Cardeal Copia. Na seqüência, três singles foram lançados para o álbum: Rats em 13 de abril de 2018, Dance Macabre em 18 de maio de 2018.
Para tal, cá estamos, “comemorando” os dois anos de seu lançamento.


Prequelle mistura hard rock, heavy metal, uma pitada de doom metal, além do rock progressivo e, por incrível que pareça, também tem um pé no pop rock. Essa mistura afasta muito headbanger conservador e é um dos motivos para ter bastante gritaria depondo contra o Ghost.
É uma verdadeira bobagem, se querem saber a minha opinião.
O álbum inclui ainda influências dos anos 70 e 80, como Blue Öyster Cult, Boston, ABBA, bandas de hair metal entre outros estilos musicais. Não se espante se, ao ouvir o disco você dê de cara (ou de ouvidos) com um cover (fantástico, por sinal) de It’s a Sin do Pet Shop Boys como faixa bônus.

Tobias teria planejado o tema para Prequelle por anos, datando antes mesmo de Meliora. Ele descreveu o tema como "sobrevivência em um período tumultuado de sua existência sendo basicamente ameaçada" e o conceito de "morte e destruição" para compor a obra. Lembra algo?
Ele queria fazer um registro sobre a Peste Negra, no período da Idade Média e que, se vocês lembram do tempo da escola, foi aquela pandemia que levou a cerca de metade da população da Europa a morrer.

Se uma metade da população tinha pinicado do plano terreno, a outra metade começou com o que Tobias também reflete no disco: os "problemas de mortalidade" surgiram, o conceito e expressão "memento mori" imprimiu forte significado entre os povos. Essa expressão latina reforça a lembrança  literal de que somos mortais – "lembre-se da morte", numa tradução literal.
Esta expressão era a saudação utilizada pelos paulianos Eremitas de Santo Paulo da França (entre os anos 1620 e 1633), também conhecidos como "Irmãos da Morte". Mas ela não é desse período: em O Fédon de Platão, livro em que a morte de Sócrates é recontada, introduz a ideia da prática apropriada pela filosofia platônica como "sobre nada além de estar morrendo e morrer".

"Memento mori" é também um conceito fundamental do estoicismo, que trata a morte como algo natural e certo que não deve ser temido, mas sim, elaborado. Os estoicos da antiguidade clássica eram particularmente distintos por seu uso desta disciplina, e para se ter um exemplo, as cartas de Seneca estão repletas de postulado referentes à meditação sobre a morte:

"Muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens mínguam e fluem em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver, e ainda não sabem como morrer."

Após a pandemia da Peste Negra ter assolado a Europa, o que ficou foi o sentimento de que, se era inevitável morrer, era necessário certificar-se de que faria a passagem, bem pelo menos, para não sofrer aguardando no purgatório, ou passar a eternidade no inferno.
Tobias Forge foi muito sagaz, pois ele trouxe também como uma das temáticas abordadas em Prequelle uma situação pertinente: com o olhar nos tempos medievais, conta definitivamente muitas coisas atuais. Ele observou que, nos últimos anos, muitas lendas do rock morreram, como Ronnie James Dio, David Bowie , Prince e especialmente Lemmy Kilmister. A morte desse último foi o que mais o afetou:  "Isso me fez querer ficar um pouco mais atento quando se trata de tentar garantir que você aproveite as oportunidades que você tem com seus idosos." E assim, mais um "feeling"foi registrado no disco.

A faixa de abertura Ashes apresenta a filha de Tobias, cantando Ring a Ring o 'Roses, uma rima infantil que se diz ter se originado durante a Praga. No entanto, essa é uma afirmação sem registro factual. Só depois da Segunda Guerra Mundial que a interpretação do poema surgiu como se fosse entoado nos tempos medievais e se mostra inconsistente – os sintomas descritos no poema não se encaixam com os da Peste. De qualquer forma, o que fica é a atmosfera de uma cantiga de roda antiga.

Rats foi o primeiro single lançado. O vídeo conta com o novo personagem líder do Ghost, Cardinal Copia - um macabro carinha, cheio de malemolência. Sim, ele dança no vídeo e é espetacular.


A música é uma homenagem melodiosa ao protagonista da disseminação da Peste Negra. Se espalhando como fogo, o transmissor rompeu (da forma mais trágica) os costumes ruins, porém comuns, na sociedade medieval.
A falta de higiene e saneamento básico, propiciou que os roedores se espalhassem. Vindos de navios do Oriente, os bichos procriaram aos montes e no meio de tanta sujeira, se tornaram uma praga. A pulga desses animaizinhos também fez a festa, inclusive em humanos. Foi através dela que a Peste se espalhou, afinal as pessoas não tomavam banho todos os dias como nós, não trocavam de roupas regularmente, faziam as suas necessidades sem um lugar para descartar o conteúdo (geralmente os penicos cheios eram jogados pela janela) e viviam amontoadas em casas pouco arejadas.

Outra faixa que usa temas ligados ao período medieval (e também à peste) é Dance Macabre, uma canção alegre que tem como tem como objetivo capturar a noção de como pessoas estariam festejando excessivamente sem saberem que vão morrer. O vídeo tem até uma referência à famosa coreografia de Thriller de Michael Jackson:



A ideia do "Danse Macabre" parece ter surgido de uma poesia escrita em 1376 por Jean de Lèvre após ter se curado da peste dois anos antes. Os versos representam a morte que, bailando, chama a si do papa, imperador e douto homem até o mais simples camponês, sem distinção de "classe" (não dá para falar em "classe", na Idade Média, convenhamos. Mas na falta de um termo melhor...).
A origem da "dança" deve ter sofrido não sem algum tipo de influência de uma das crenças populares da época, que segundo os quais, à meia-noite os mortos levantavam de seus túmulos nos cemitérios e dançavam para atrair os vivos a lhes fazer companhia. "Venham, nós somos divertidos também!"

Tobias Forge escreveu a introdução de Pro Memoria alguns anos antes deste álbum. Ele e o produtor do disco predecessor, o Meliora, Klas Åhlund formularam o cerne da canção a partir de uma ideia - uma "espécie de sinfonia de guitarra estilo Brian May", mas não tiveram tempo de trabalhar melhor nela. O resultado está no Prequelle, como a faixa 7.
No meio do ano passado, Tobias concedeu uma entrevista dizendo que gosta muito de tocar guitarra, mas que em turnê ele passa pouco tempo dedicando ao instrumento. Isso abriu brechas para ele dizer que desejaria deixar os vocais e se dedicar apenas às guitarras.
Ouvindo Pro Memoria (e outras faixas desse e de outros discos), seria um sacrilégio se ele abandonasse a função para outro cantor, pois sua voz é ótima!

A faixa final Life Eternal pergunta se você tivesse a opção de viver para sempre e se "você gostaria de fazer isso?" A intenção de Tobias era explorar o uso do piano disse: "Eu queria que fosse muito ambicioso, quase clássico, e o piano dá a essa música ar e clareza ..." Mais uma vez, homem, não deixe de cantar" Essa música é mais um dos pontos altos do álbum e o resultado é épico (ouça aqui).

A instrumental Miasma tem uma atmosfera interessante (ouça). O título, tudo a ver com a Peste e a Idade Média. Acreditava-se, antes da descoberta e os avanços dos estudos da microbiologia que, as doenças teriam origem nos "miasmas" - o conjunto de odores fétidos provenientes de matéria orgânica em putrefação nos solos e lençóis freáticos contaminados. Tanto é que, na ocasião da Peste, além da atribuição da doença ser parte de um plano divino como "castigo de Deus" aos que viviam em pecado, haviam aqueles que diziam que os odores fétidos atraíram a doença e que bastava espalhar pela casa plantas perfumadas para "purificarem o ar" ou carregar um saquinho de tecido com alfazema.
Hoje, os miasmas é explicação considerada obsoleta, mas foi essencial para algumas mudanças no comportamento humano medieval: medidas correntes de Saúde Pública, tais como, o enterro de cadáveres, a implementação de sistemas de esgotos, recolha dos lixos, a drenagem de pântanos, passaram a ser colocados em prática para evitar doenças. Completamente errados, não estavam...

Sobre o disco, ainda tem mais: a minha favorita, Faith, foi o terceiro single do Prequelle, lançado no dia 20 de dezembro de 2018. Apesar do título, não há nenhuma relação com a música de George Michael. Com estupendos riffs de guitarra e melodia gospel, Forge imprime seu o belo jeito de fazer música. O lyricvídeo lançado é provocativo e perturbador: Logo no começo dele é possível ver uma dolorida lobotomia seguida de imagens de médicos abrindo uma cabeça humana.



Lobotomia é uma intervenção cirúrgica no cérebro na qual são seccionadas as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo e outras vias frontais associadas. Foi utilizada durante anos como tratamento para casos graves de esquizofrenia, e em alguns deles, a lobotomia transformava os pacientes em vegetais ou simplesmente os tornava mais dóceis, passivos e fáceis de controlar - muitas vezes, menos inteligentes também.
A imagem no vídeo de um instrumento pontiagudo cruzado com um martelo parece o símbolo comunista da foice e o martelo, e... Bem... Deixa pra lá!  

Logo após Faith, somos presenteados com See The Light, uma faixa lindíssima, apesar da letra tratar-se de mais uma espécie de ode ao Lúcifer, ou de uma manifestação desse como esse estivesse apaixonado, ela é simplesmente fantástica!

But of all these dark roads that I roam
None could compare to you

Every day that you feed me with hate
I grow stronger!

Fala-se tanto de demônio, morte por peste, ratos, mas e uma das personagem centrais desse período histórico? As Bruxas?
Pois temos também! Witch Image fala das consideradas melhores "servas" do diabo na Terra, e  que foram altamente perseguidas na Idade Média, na Inquisição. Em pelo menos 99% dos casos, era por  preconceito exacerbado e um tal medo, também infundado. 

Helvetesfönster (ouça aqui) é outra canção instrumental, dessa vez a faixa de nome difícil tem todo um ar de taberna e antecede a bela Life Eternal
A palavra "helvetesfönster" está em  sueco. Em português significa "janela do inferno". 
Janela do Inferno eram o nome popular dos vestidos (foto ao lado) com "decote lateral" que começaram a aparecer durante a Idade Média e se tornaram vestimenta comum especialmente entre as camponesas.
Esse "apelidinho" das vestes foi dado pois  os homens (pecadores) poderiam "espiar" os seios das mulheres e fazendo isso,  portanto, "pecavam". Não que eles ficassem expostos – longe disso! Os seios seguiam cobertos por uma camisa ou túnica de linho, presos com um sinto trançado com tiras de couro cru. Porém o formato dos peitos estavam, digamos, mais aparentes com esses vestidos, que eram usados, sem espartilhos. O visual acabava provocando a imaginação dos homens e "tentando" os pobrezitos, coitados! (#sóquenão)


Além das músicas citadas, não podemos deixar de mencionar as faixas bônus: It’s a Sin de Pet Shop Boys (originalcover) - que é muito a cara do Ghost - e Avalanche de Leonard Cohen (original e cover). Ambas, verdadeiros deleites.

Prequelle poderia ser então, uma obra numeral, mais um bom disco da discografia do Ghost, que continha muito a ser apreciado; recheado de conceitos pertinentes, história e é claro, boa música. Mas 2020 e com o Covid-19, a cada faixa e a cada sentido inerente na obra, tornou Prequelle muito mais potente, mais marcante e atemporal.  E aí, concordam?

Se não conhecem o disco, sugiro ouvirem. Garanto que não se arrependerão.
Abraços afáveis!

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