Qual é o lado certo? - por Emanuelle Garcia

As redes sociais são terrenos férteis para discussão de assuntos polêmicos e complexos, porém, a maioria dos perfis dos usuários destas redes nem sempre são os mais qualificados para emitir opiniões sobre estes temas.
No entanto, eles se manifestaram.
Emitem opiniões e julgamentos que, para o bem ou para o mal terão consequências já que estas redes ultimamente, tem ganho o status de “opinião popular”, mesmo sendo formadas por bolhas de opiniões que por conta de algoritmos ou mesmo por ação direta dos usuários, acaba aglomerando perfis que pensam de forma semelhante.
E muitas vezes isso impede discussões dando a falsa sensação de homogeneidade de pensamento.

Nesta situação discutiu-se sobre o passado de escravidão e preconceito racial - um dos mais negativos pontos da história da humanidade – fazendo surgir consequências que estão longe de serem parte da solução.
Uma delas, a onda de “cancelamentos” de filmes considerados de teor racista.
A HBO Max, por exemplo, retirou o filme E o Vento Levou (1939) da sua plataforma de streaming.
O longa se passa durante a Guerra Civil Americana, período de grande enfrentamento racial no país e que (infelizmente) não ficou só naquele recorte temporal de sua história.

A questão posta hoje em dia, para profissionais da comunicação, artistas e pessoas comuns, é algo grave: deixam o afeto sobrepor aos outros aspectos inerentes nas coisas. Em uma obra artística, o que pode ser levado em conta é o que ela traz para o debate. No caso de E o Vento Levou, não se pode considerar somente que comunidade negra interpretou o filme como “glorificação da escravidão” como o único ponto de vista possível.
Falta ainda uma postura enfática na nossa sociedade: existem várias noções e sentidos no momento em que o filme foi escrito ou pensado e lançado; a recepção, a crítica e o amadurecimento da narrativa com o passar dos anos que colocam a obra muito mais complexa do que era inicialmente.
Debater e pensar as nuances de forma a determinar os aspectos de uma sociedade escravagista no longa, é necessário. Mais que isso, não se fechar a um dualismo aparente das obras.
Existe mais do que só “o certo e o errado”. Existe – além do político – o aspecto estético, a sagacidade, a ironia etc.
É preciso deixar de lado um pouco o discurso, ou essa separação – o que “não presta” do que “presta” – pode ser injusta e acima de tudo, nociva.
Se não se impuser um levantamento para além das respostas duais, não pensamos “fora da caixa”.
Considerando o filme em questão como uma história que é o que é, as pessoas cometem três esquecimentos que generalizam e “banalizam” os argumentos: primeiro que o filme foi lançado em 1939, período em que a figura do negro nos EUA foi retratada como era na época.
Segundo que foi o primeiro Oscar para uma coadjuvante negra, Hattie McDaniel, e isso é um avanço importante dado que a academia era (e é) composta majoritariamente por homens brancos.
Terceiro que, mesmo que o filme tenha sido tirado do catálogo por um tempo, o passo para que se queimem em praça pública, obras artísticas que, por serem pertencentes a um dado período, não são consideradas como obras de respeito para os nossos tempos, já foi dado.
O anacronismo é só mais um dos conceitos que, a nova geração tecnológica e militante, não entende o significado e o revisionismo histórico é algo que, em grande escala, é muito debatido nas universidades.
Fora, dela, o que fazem? Derrubam estátuas? Como vão explicar a história para gerações futuras se estão apagando (seletivamente) alguns traços dela? Seriam só os historiadores que deveriam se preocupar com o ato de não julgar os eventos do passado com os valores de hoje? São todas perguntas retóricas.


Outro momento, da semana passada, tomou as redes sociais em mobilização.
A autora dos romances sobre um menino bruxo que “luta contra o mal em seu mundo”, o Harry Potter, manifestou-se através de sua conta no Twitter algo que deixou a sua turma de (novos) fãs, revoltados.
Num artigo (que pode ser lido em algumas páginas especializadas) J. K. Rowling cita uma tributarista que perdeu o emprego por ter empregado termos considerados “transfóbicos” no Twitter.
A moça levou a questão ao tribunal do trabalho alegando que sexo é determinado pela biologia e protegida pela lei. O juiz determinou que não era.
Se posicionando a favor da moça, Rowling atiçou a comunidade da internet que já se prepara para outro “cancelamento” da mesma.
Em linhas gerais, no seu artigo ela debate a transgeneridade e afirma ter estudado bastante sobre o assunto – algo que, muito provavelmente, os “carrascos” não fizeram em dedicação semelhante, e se fizeram, foram levados pelo afeto, assim como a autora.
Em suma, a sua postura é complexa, mas não é determinada como certa ou errada – ela tem um pouco das duas, principalmente pois, é pautada em sua experiência de vida.
É uma visão de mundo, que, por ser uma pessoa pública, tem um grau de responsabilidade quando exposta, uma vez que ela influencia um grupo de seguidores, sem que isso seja a intenção.
Certamente ela teve e tem consciência dessa atitude e mesmo assim, publicou a sua opinião.
Opinião essa que, para muitos dos contrários dizem que é a faísca para o ódio da sociedade com as pessoas trans.
Ela foi alvo de ativistas e simpatizantes quando se posicionou sobre o assunto. Não houve empatia da parte deles.
Opinião para eles não é “dado científico”. Refutaram e cancelaram a autora sem dó.  Ela, então se afastou das redes por tentar manter a sua sanidade mental. Esse é o preço que se paga pela fama na modernidade: estão todos expostos a um julgamento de vários grupos da sociedade, o tempo todo.
A questão que paira como problemática é que, nem aquele que se expõe, nem aquele que segue, possui discernimento sobre as variações do que é comentado.
Não há sabedoria suficiente que possa abarcar o debate sem que seja refutado por alguma outra experiência.

Lembram da reflexão que os afetos não podem sobrepor outras argumentações quando se debate um tópico?
Esclareço: eles não podem sobrepor, mas eles existem, são múltiplos e, pelo menos, matam a generalização.
Agora, novamente, com o artigo Rowling aborda várias questões: ela fala sobre feminismo radical, e os aspectos desse debate sobre gêneros não-binário ainda sonoro, mas pouco inteligível.
Ela cutucou feridas abertas. Sua preocupação é que o ativismo da comunidade trans por vezes, no afã de garantir o seu direito de ser, demonstra falta de compaixão com todos os demais, inclusive as mulheres, que como ela, entendem os limites dos gêneros e também foram julgadas mal por serem quem são.

Já estive em uma palestra sobre gêneros para estudantes de licenciatura. Lá, um ativista LGBTs apresentou todos os segmentos transgêneros, se assim posso descrever. No debate, surgiram várias questões, e ficou claro que avalizar que todos os lados, no ambiente escolar, fossem contemplados, era um trabalho duríssimo.
Mas, para mim, ficou visível que “o conhecimento” não nos faz melhor que os outros. Pelo contrário. Confunde muito mais: As falas de muitos presentes, senti um tom de não aceitação da maioria que se dizia “apoiador” da causa.
O palestrante disse (para colocar panos quentes, talvez) que ele mesmo tinha preconceitos, e certas situações são difíceis de assimilar, mas que precisamos persistir, já que, de qualquer forma, o mundo estava mudando e se vivemos nele, precisávamos entender para aceitar.
Mas, será que só entender, basta?
Somos egoístas e para garantirmos coisas importantes para nós, fatalmente excluímos o direito do outro de exercer a sua liberdade de escolha.
O que mais acontece é uma reação que comumente chamávamos de “teto de vidro” e isso vem dos dois lados que entram em conflito.

Ao se expor, J.K. sofreu e vai sofrer mais ainda o que chamam de “cancelamentos”.
Os atores dos filmes adaptados de suas obras, vieram à tona para se mostrarem desfavoráveis a fala da autora: Daniel Radcliffe foi o primeiro na divulgação.
Ele mesmo começou a sua manifestação dizendo que a mídia venderia como “contra” Rowling.
Era exatamente assim que as manchetes divulgavam o seu texto.
Logo, veio o ator Eddie Redmayne – o Newt Scamander da franquia Animais Fantásticos – se posicionando.
Ainda que fosse sutil, Eddie falou como ator que já interpretou um transgênero nas telonas, com A Garota Dinamarquesa.
Emma Watson – ativista dos direitos das mulheres – e Evanna Lynch, tomaram partido, sem surpreender ninguém.
A última, a Luna Lovegood das franquias Harry Potter, disse em sua carta aberta: “J.K. Rowling está no lado errado”.
Qual é o lado certo? Enquanto alguns não vêem problema no texto de Rowling – e são também cancelados como “passadores de pano” – outros a criticam e endeusam os atores que, possuem experiências diferentes da autora, e constroem narrativas que colocam Rowling mais ou menos sem saída.
A experiência de vida de cada um de nós com relação a preconceitos ou abusos não diz respeito a nossas opiniões? Então, afinal, o que os movimentos estão fazendo, se não estão conseguindo reconhecer que, cada um tem uma visão de mundo e que ela, não precisa ser aceita pela maioria pensante?
Retomando a fala do palestrante LGBTs: não precisamos conhecer para respeitar? Porque temos apenas duas opções: aceitar a opinião das pessoas sobre temas polêmicos – e, portanto, exaltá-las como “entidades sensatas” – ou não aceitar as exposições taxando como “sem embasamento teórico” ou que “incitam algum tipo de comportamento violento”?
Em nenhum momento do artigo Rowling diz que as pessoas devem pensar como ela. Em nenhum momento ela diz que pessoas trans devem ser limadas de todos os direitos e seguranças.
Receber uma série de emails julgando o seu comportamento como “instigadora do ódio” não é também um ataque controverso e duro?
O que difere os dois tipos – o dela e dos ativistas – se ambos se valem dos mesmos meios?
Acima de tudo, o que não está sendo respeitado nos movimentos é a individualidade de cada um.
O que parece ser um problema de nossos tempos, ainda sem amenidades é que constantemente nos valemos do egocentrismo para tudo que envolve a nossa vivência em sociedade.
Colocamo-nos superiores uns aos outros, sem nos ater que direitos e deveres todos nós temos. E que nossas particularidades inclusive, o próprio nome diz, devemos lidar com responsabilidade, sem deixar de considerar que as soluções encontradas possam prejudicar o outro.
Se prejudicarem, precisamos deixar ao menos claro que, para todo, isso não significa que estou contra a existência do outro que tem outras razões de ser quem é.

Bem, então precisamos, acima de tudo, entender que “coexistir” continuará sendo impossível de se colocar em prática, pois os dualismos rasos e as manifestações de revolta seletivas insistem em permanecerem presentes. Compreender para aceitar?
Esse não é o caminho que está sendo traçado. Não está acontecendo o cuidado para não ser aquele que empurrou do abismo, aquele outro que pediu que fosse compreendido, e assim, aceito.

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