Lights out, um pequeno ensaio sobre música e reclusão - por Adão Alves

Quando as luzes do palco se apagam, o que se acende? 

Quantas dores foram curadas em meu coração com uma simples canção? Quantas melodias me fizeram seguir em frente e ter forças pra encarar o sol em mais uma manhã? Incontáveis questões acerca deste tema poderiam, facilmente, pipocar diante de nossos olhos em uma situação como esta. 

Com um sorriso no rosto, eu estava aguardando ansiosamente pelo show do The Offspring. A abertura seria da banda Pennywise. Como poderia eu, aos 14 anos, pensar que teria essa possibilidade à frente? Claro que isso jamais passou pela minha mente, ainda mais no quintal da minha casa. Estava ali, diante de mim, a possibilidade de reviver emoções e momentos de uma adolescência conturbada, mas que jamais voltaria. Era a chance de encarar velhos “amigos” nos olhos e agradecer, assim como a vários outros, o suporte emocional que me deram quando eu precisei. 

Tudo isso veio abaixo com a ascensão de uma ameaça invisível, silenciosa e mortal. Nossa liberdade foi condicionada. Demonstrações de carinho e afeto se tornaram lâminas afiadas. Confraternizar se tornou um atentado a vida de quem amamos. E pelo amor, o que restou foi somente a distância. 

Em casa, ao menos como deveria ser, nos deparamos cada dia mais com nós mesmos. Nossa sombra de tornou a única face amigável. Nossa voz era o único bom dia em meio ao eco da solidão e do medo. Longe daqueles que amamos nossos sentimentos afloraram e, à cada minuto, a dor de sermos nós mesmos crescia em tragédia e amargura. 

Quando olhávamos pela janela víamos aqueles que atentavam contra os que se privaram do mundo em prol do todo. Víamos retratos de desrespeito e arrogância enquanto segurávamos as lágrimas por estarmos cercados de... Apenas nós. 

Queríamos conforto. Queríamos colo. Queríamos carinho. E onde buscamos? 

A arte estava ali, como sempre estivera... 

A música, aquele ser cheio de carinho, nos abraçava a cada soluço. Ela que marcara várias fases, boas e ruins, das nossas vidas, sorria e nos fornecia um pouco do seu carinho e conforto. Nossos amigos, aqueles que jamais abraçamos, cantavam pra nós enquanto nossos corações se apertavam. Uma nota, uma palavra, parecia pouco, mas bastava para que a dor cessasse. 

Senão agora, quando? Quando iríamos valorizar aquilo que sempre nos proporcionou alegria, conforto, sustento e força? Quando iríamos valorizar não só os artistas que nos proporcionavam aquele mix de sentimentos, mas também aqueles que trabalhavam por trás dos holofotes? Produtores, roadies, engenheiros de som, designers, iluminadores, os motoristas que nos traziam as peças principais do show até onde estávamos, os companheiros que nos vendiam uma garrafa de água que muitas vezes reclamávamos do preço, mas que, ainda assim, nos revigoravam pra continuar a aproveitar o momento e nossos amigos? 

Num mundo onde não valorizamos ouvir a música pelos canais apropriados em que os artistas e suas equipes pudessem receber retorno financeiro pelos momentos que eles nos propiciaram, como seria, hoje, se não houvesse persistência? Como seria o hoje se todos sucumbissem quando comprávamos discos pirateados e ou fazíamos downloads ilegais ao invés de utilizarmos serviços de streaming ou, até mesmo, comprássemos discos oficiais? 

Como você teria enfrentado cada momento sem uma voz reconfortante nos seus ouvidos lhe dizendo o quanto é forte e que, ainda assim, estava contigo enfrentando aquela situação, dizendo que sofria com você , mas estava de pé fazendo aquilo que amava, pois te queria bem? 

Como? 

Temos uma péssima tendência de pensar que arte parte da futilidade. Pensamos frequentemente que artistas estão lá para criarem um ambiente de alegria e conforto para nós, porém não merecem tanto dinheiro quanto pensamos que eles recebem. Negligenciamos toda uma trajetória de aprendizado, foco e persistência num mercado canibal e doloroso. E quando eles não suportam as próprias dores, os condenamos como covardes. Somos ingratos. Algozes. Somos aqueles que mordem as mãos que nos alimentam. 

Agora, isolados, sentimos falta de shows... Sentimos falta da música ao vivo entrando em nossos ouvidos e nos agitando, nos proporcionando momentos únicos e histórias magnificas que iremos carregar pelo resto de nossas vidas. Já eles, eles sentem falta de proporcionar isso tudo e, em vários casos, de garantir conforto para suas famílias e para aqueles que deles dependem. 

Eles tentam se reinventar. Buscam na Internet formas de levar o espetáculo para nossas casas e o que fazemos? Nos reunimos para celebrar esse espetáculo feito para um momento de reclusão retardando, assim, a volta deles aos palcos. Contraditório... 

Vemos aí, que ainda não valorizamos o trabalho deles. Não valorizamos aquilo que nos toca, nos conforta, nos faz seguir e nos traz calma quando apenas existe o caos. Esquecemos que em um espetáculo cancelado, não deixamos de lado apenas um dia feliz ao lado de amigos... Deixamos, também, a renda de vários profissionais ligados ao evento e de outros tantos que deles dependem de forma indireta, tais como motoristas, trabalhadores de redes hoteleiras e até mesmo dos ambulantes que vendem comida na porta dos estádios. 

A maioria de nós não vive sem música. Ela faz parte do nosso cotidiano, do nosso caráter e até mesmo dos nossos romances. Ainda assim, nem em um momento como este onde perdemos a normalidade de nossas vidas, onde vários de nós deram adeus a familiares e amigos, relações desfeitas, empregos dizimados e decepções constantes, conseguimos valorizar a arte como deveríamos. A música ainda persiste cumprindo seu papel. Conseguiremos cumprir o nosso? 

O que você precisa fazer pra que a música sobreviva é claro. A pergunta principal é: você considera apropriado tomar as atitudes corretas como forma de agradecimento por ter chegado até aqui sob o conforto dessa maravilhosa forma de arte? 

Espero que sim... 

Quando as luzes do palco se apagam, as lanternas daqueles que são invisíveis se acendem pra concluir o espetáculo enquanto você volta pra casa alegre. Não deixe que elas se apaguem pra sempre. 

A música transcende os palcos e os discos. Ela é o sustento, não só emocional, de várias pessoas que dela dependem. 

* Adão Alves já se aventurou como autor de livros (escreveu o romance policial A Máscara de Deus - Inferno Privado publicado pela editora Deuses) e é um grande entusiasta da boa música. Atualmente trabalha como tatuador profissional no estúdio Banshee localizado em Uberlândia-MG (perfil profissional no Instagram: aqui).

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