O sexto álbum de estúdio dos
bardos do Blind Guardian tem um lugar especial em sua discografia e também, entre
os fãs da banda. Lançado em 1998, o álbum foi grandioso, e, sendo influenciado
um pouco pelo rock progressivo, contém ainda harmonias vocais como se fossem
corais, muitas, mas muitas linhas de guitarras complexas, é recheado de
interlúdios com partes narradas e vinhetas, conferindo um cenário das histórias.
Há também a presença de instrumentos folclóricos, dando um ar medieval intenso
às faixas, que são mescladas com power metal rápido e baladas e peças
operísticas encantadoras.
A arte (da capa de NightFall in
Middle-Earth e do encarte) é assinada por Andreas Marshall, mas as letras são
de Hansi Kürsh – que pela primeira vez, não é creditado também como o baixista,
mas sim Oliver Holzwarth, que tomou o posto para que Hansi se dedicasse
inteiramente à função de vocalista.
O Blind Guardian experimentava o
auge da suas carreiras apresentando então o melhor trabalho instrumental que já
haviam feito. E todas as demais partes que compunham o Nightfall in
Middle-Earth tinham um gosto muito especial, especialmente para aqueles que,
além de acompanharem a banda pelo seu som característico, haviam encontrado
neles a razão de partilha sobre o gosto pela literatura de J. R. R. Tolkien.
Este seria o primeiro álbum conceitual do grupo que traria apenas canções
baseadas no livro mitológico do autor - O Silmarillion - conferindo assim, o ápice da influência do autor na base criativa dos músicos germânicos.
O Silmarillion é o livro mais complexo de
Tolkien e não chegou a ser publicado por ele em vida. Tolkien era um tanto
perfeccionista. Revisava muito as suas histórias antes de publicá-las. Não
deixava passar nada que não tivesse realmente uma razão de ser. Ele chegou a
enviar os manuscritos algumas histórias de que O Silmarillion compõe, para os editores depois do sucesso de vendas de O Hobbit. Por ser um livro denso e um tanto
técnico (e àquela altura, incompleto ainda) – os contos narram a gênese da
Terra-Média bem como eventos da Primeira Era na Guerra das Jóias, as Silmarills
– os editores nem terminaram de ler, e questionaram se não havia mais histórias
de hobbits. Nesse caso, Tolkien sempre trabalhou naqueles contos, mas nunca
com o afinco de publicá-los, embora desejasse sempre.
Editado pelo seu filho Christopher
Tolkien, e publicado em 1977, O Silmarillion continuou sendo uma obra incompleta, mas essencial
para aqueles que amaram ler O Hobbit e O Senhor dos Anéis, contendo todo um
compêndio de mito-poesias importantes para o entendimento do universo Eä onde
se encontram as terras como Valinor, Númenor e é claro, a Terra-Média.
Nightfall in Middle-Earth contém muitos detalhes entusiasmados. A começar pela capa, de um cuidado belíssimo para retratar
uma passagem importante no legendarium tolkieniano:
Na imagem, Lúthien, a mais bela
filha de Eru Illúvatar (nada mais do que Deus - criador de todas as coisas) está
com Morgoth – o primeiro Senhor do Escuro.
Em a Balada de Béren e Lúthien,
Lúthien, a filha dos elfos Melian e Thingol, dança na floresta sob a luz do luar
e nesse instante, Beren, um homem – e por isso, mortal – se apaixona por ela.
Por serem de “raças” diferentes eles vivem um relacionamento às escondidas.
Supõe-se que Tolkien tenha se
inspirado na própria vida para escrever esse conto. Quando jovem, órfão, o padre Francis (seu tutor) descobriu
que ele havia de apaixonado pela também órfã, Edith Bratt, e o proibiu de se
encontrar com ela até ter alcançado a maioridade e adquirido uma bolsa de
estudos. Depois dos
contratempos e desencontros, Edith torna-se esposa de Tolkien e essa narrativa
o acompanhou: na lápide de ambos lemos o nome de Edith com a inscrição “Lúthien”,
enquanto para Tolkien, está escrito logo abaixo “Beren”.
A declaração de amor é bem bonita
e a história fantástica, cheia de reviravoltas. Beren e Lúthien passam por uma provação: o pai, Thingol, coloca um preço na filha. Se Beren conseguisse pegar uma das jóias
(silmarils) da coroa de ferro de Morgoth, poderia ficar com ela.
Prevendo sofrimento ao amado -
Beren está sendo aprisionado nas masmorras do tenente de Morgoth, o nosso já conhecido Sauron - Lúthien escapa de um quarto que o pai a aprisiona e se caminha com o Cão de Valinor, Huan, para ajudar Beren no cativeiro. Lá acontece várias coisas, dentre elas, Lúthien se torna prisioneira de Morgoth, e num dado momento dança e
canta para persuadi-lo. Eis a cena da capa, cuja história envolve muitas
outras passagens e claro, um sofrimento terrível passado pelo casal e outros personagens.
Curioso é que essa cena está um pouco no nosso imaginário popular, mais recente e diretamente ligado à uma outra história, a de George Lucas, especificamente num de seus filmes da saga Star Wars - em Retorno de Jedi (1983). Sim, estou falando da cena da Princesa Leia com o biquíni dourado como cativa de um grande verme conhecido como Jabba The Hutt...
O disco é longo, com 22 faixas, 65 minutos e 29 segundos de duração. Começa com War of Wrath como uma
vinheta, um prelúdio. Na narração, com uma espécie de batalha ao
fundo, sons de espadas e explosões, uma voz masculina rompe: é Sauron aconselhando seu
mestre, Morgoth, a fugir dos triunfantes Valar na “Guerra da Ira”. Morgoth o
manda embora numa voz dura e forte e pensa (em voz alta) sobre os eventos que levaram à sua derrota.
A faixa 2, Into The Storm é definitivamente uma boa música de abertura. Sua letra relata sobre Morgoth e Ungoliant –
um espírito maligno que vaga pela Terra-Média em forma de
uma gigantesca aranha – ambos fugindo de Valinor (um paradisíaco reino também
conhecido como as Terras Imortais) depois de terem destruído as Duas Árvores -
Telperion e Laurelin - as árvores de prata e ouro que trouxeram luz a Valinor.
Ambos, Morgoth e Ungoliant, lutam pela posse das Silmarils.
A faixa seguinte é curta: Lammoth
é atmosférica, e compõe um grito desesperado de Morgoth que convoca os Balrogs
para combater Ungoliant. A vinheta nos prepara para a quarta faixa, um hino dos
bardos: Nightfall é uma das favoritas em 10 entre 10 fãs do Blind Guardian, que
nos provoca a cantar junto:
Emocionada, a música trata de Fëanor
e seus sete filhos que lamentam a destruição causada por Morgoth, entre elas o
assassinato de Finwë, pai de Fëanor. Todos juram vingar-se dele, apesar da
desaprovação dos Valar.
The Minstrel é sobre Maglor, um
dos filhos de Fëanor que compõe a música "The Fall of the Noldor",
baseada em assassinato do rei, seu avô. É uma peça pequena, de 33 segundos,
acústica, com uma um trecho cantado por Hansi acompanhado de um violão.
Ela nos atenta para a eletrizante e bem
trabalhada Curse of Fëanor. Nela, Fëanor expressa sua ira e
raiva e relaciona os delitos que comete, principalmente o assassinato do rei, na
busca por vingar-se de Morgoth.
Captured é mais uma vinheta.
Como o nome diz, fala em uma "captura"; representa o aprisionamento de
Maedhros, mais um filho de Fëanor, acorrentando-o às montanhas Thangorodrim.
Assim, a faixa 8 que vem em seguida, Blood Tears Maedhros relata os horrores de
seu cativeiro e sua libertação por Fingon, filho mais velho de Fingolfin,
meio-irmão de Fëanor.
A nona faixa do disco é também o
primeiro single do álbum:
A capa mais uma vez, arrebenta,
assim como a música, que tem uma levada ótima e uma letra épica, de outra parte
de contos do O Silmarillion, desta vez sobre Turgon que, diante de derrota
inevitável, constrói a cidade de Gondolin com o auxílio de Ulmo, o Vala Senhor
das Águas, uma espécie de Poseidon da mitologia de Tolkien.
A décima faixa do disco, Face The Truth também funciona
como introito para a música seguinte. Nela, Fingolfin reflete sobre o destino
do povo de Noldor, sobre o qual e é o título da 11ª faixa - Noldor.
Fingolfin relata a passagem de seu
exército dos campos gelados de Helcaraxë e também a profecia do Vala Mandos
sobre o destino do seu povo, os Noldor. Essa profecia do Norte vai contra a decisão dos
deles de deixarem Aman, aconselhando que se eles partissem, não deveriam
retornar. Fingolfin reflete por si próprio e pela culpa de seu povo e "prevê" a sua derrota final.
A música é até um tanto arrastada,
talvez até proposital, como uma forma de demonstrar o "feeling" das agruras sobre a queda dos Noldor.
Battle of Sudden Flames refere-se à
batalha em que Morgoth quebra o cerco de Angband usando seus balrogs e dragões.
As letras falam de como Barahir, da Casa de Bëor, e a grande perda de sua
companhia, que acabou por salvar a vida do rei élfico Finrod Felagund e, em
troca, Finrod fez um juramento de amizade a Barahir e a todos os seus parentes.
Uma das minhas músicas favoritas do
Blind Guardian, que eu não me contenho em ouvir só uma vez, é a faixa 13: Time Stands Still (At the Iron Hill)
Muito mais do que Nightfall (que é um
clichê entre os fãs do Blind Guardian) eu escolho essa faixa como a minha favorita do álbum, pois me é a que mais impulsiona a ter razões de cantá-la "sob o luar" (risos). A letra volta a falar de Fingolfin, neste caso, no momento em que ele cavalga até os portões de Angband para desafiar Morgoth a um
duelo. Fingolfin fere Morgoth sete vezes, mas o herói não resiste e acaba morto.
Recobrando o fôlego, vem The Dark Elf, em 23 segundos de um som de chuva e um rápido canto estilo gregoriano. "O elfo
negro" é uma referência à Eöl, que seduziu a irmã de Turgon e foi pai de
Maeglin, o futuro traidor do povo de Gondolin. A partir dessa, em Thorn, ouvimos uma
semi balada de power metal virtuosíssima, contando sobre o cativeiro de Maeglin
em Angband e Morgoth tentando converter Maeglin ao seu lado com ameaças e
mentiras. O título da música refere-se aos arbustos de espinhos que escondiam
os portões externos de Gondolin.
A 16ª faixa é uma balada triste e "caidona" de Nightfall in Middle-Earth, uma vez que The Eldar é sobre a despedida do rei élfico
Finrod Felagund ao seu povo, morrendo de feridas sofridas ao salvar seu amigo
Beren (o homem apaixonado por Lúthien) de um lobisomem, cumprindo assim seu
juramento à Casa de Bëor. Triste, mas belíssima.
Nom the Wise é mais uma vinheta, onde
Beren lamenta pela perda de seu amigo, Finrod. "Nóm" significa "sábio" e foi o
nome dado a Finrod pelo antepassado de Beren, Bëor. Em seguida, a rápida When
Sorrow Sang, é uma declaração de amor de Beren à princesa élfica Lúthien, bem
como o seu fim - *spoiler*- a sua morte promovida
pelo lobo de Morgoth, Carcharoth . A última parte da música é sobre o Vala
Mandos ouvindo a música de Luthien sobre seu sofrimento por ela e Beren serem
de "raças diferentes" (eu seu que usar "raça" é um tanto pejorativo, mas não é o caso, posso afirmar).
A faixa 19, Out on the Water é um
canto curto e refere-se à última morada
de Beren e Lúthien. The Steadfast trás uma fala de Morgoth, que amaldiçoa seu
prisioneiro Húrin (conhecido em élfico como "Steadfast") que se recusou a revelar
o segredo das terras de Gondolin.
Em A Dark Passage, Morgoth pondera seu
triunfo na quinta batalha. A música também relata as origens dos parentes dos
homens e a maldição de Morgoth em Húrin para testemunhar o destino trágico de
seus filhos (Os Filhos de Húrin é um livro póstumo organizado por Christopher
Tolkien e é um dos livros mais trágicos - em termos de gênero - escritos pelo seu pai).
A vinheta Final Chapter (Thus
Ends...) conclui o álbum, falando da vitória de Morgoth através da "traição do
homem", mas também da esperança de que nada estaria acabado, e eles teriam um renovado dia.
Existem ainda, as faixas bônus que merecem adendos. Harvest of Sorrow é uma delas e aparece nas versões remasterizadas de 2007 e 2018 do
álbum. Sua letra trata sobre Túrin, filho de Húrin, que lamenta a perda de sua irmã
Niënor, numa parte tristíssima (que ainda teria conseqüências muito mais
trágicas, à nível de Édipo Rei, de Sófocles) muito bem colocada na
canção dos bardos.
A música acima refere-se à
remasterização do álbum lançado em 2018. Doom mostra um relato mais detalhado de Húrin
sendo amaldiçoado por Morgoth. Uma versão ligeiramente reescrita aparece em uma
edição limitada de Beyond the Red Mirror, o décimo disco do Blind Guardian,
lançado em 2015), como um capítulo de epílogo. Além dela, The Tides of War é
outra faixa do disco de 2018, e esta, a letra dá conta de Túrin chegando em Beleriand para
enfrentar Morgoth, pensando também na queima dos navios Teleri em Losgar e na Maldição de Fëanor.
O álbum é longo e cheio de
detalhes. Atrai até mesmo quem não leu O Silmarillion e se configura como o
melhor disco baseado em Tolkien. Outras bandas, já mostradas
aqui, apresentam uma ou outra música que tiveram como inspiração as histórias
de Tolkien, mas Blind Guardian foi além e trouxe um álbum conceitual de contos
considerados muito complexos até mesmo pelos especialistas tolkienianos. O
valor de Nightfall in Middle-Earth é, sem dúvidas, imensurável.
Depois do trabalho hercúleo, o Blind Guardian
retornaria com o seu A Night At The Opera apenas em 2002. Nesse disco, os bardos dariam "um tempo" em Tolkien.
Abraços afáveis!
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