A influência da literatura de Tolkien na música - Especial Blind Guardian (6)

O sexto álbum de estúdio dos bardos do Blind Guardian tem um lugar especial em sua discografia e também, entre os fãs da banda. Lançado em 1998, o álbum foi grandioso, e, sendo influenciado um pouco pelo rock progressivo, contém ainda harmonias vocais como se fossem corais, muitas, mas muitas linhas de guitarras complexas, é recheado de interlúdios com partes narradas e vinhetas, conferindo um cenário das histórias. Há também a presença de instrumentos folclóricos, dando um ar medieval intenso às faixas, que são mescladas com power metal rápido e baladas e peças operísticas encantadoras.
O Blind Guardian experimentava o auge da suas carreiras apresentando então o melhor trabalho instrumental que já haviam feito. E todas as demais partes que compunham o Nightfall in Middle-Earth tinham um gosto muito especial, especialmente para aqueles que, além de acompanharem a banda pelo seu som característico, haviam encontrado neles a razão de partilha sobre o gosto pela literatura de J. R. R. Tolkien. Este seria o primeiro álbum conceitual do grupo que traria apenas canções baseadas no livro mitológico do autor - O Silmarillion - conferindo assim, o ápice da influência do autor na base criativa dos músicos germânicos.

O Silmarillion é o livro mais complexo de Tolkien e não chegou a ser publicado por ele em vida. Tolkien era um tanto perfeccionista. Revisava muito as suas histórias antes de publicá-las. Não deixava passar nada que não tivesse realmente uma razão de ser. Ele chegou a enviar os manuscritos algumas histórias de que O Silmarillion compõe, para os editores depois do sucesso de vendas de O Hobbit. Por ser um livro denso e um tanto técnico (e àquela altura, incompleto ainda) – os contos narram a gênese da Terra-Média bem como eventos da Primeira Era na Guerra das Jóias, as Silmarills – os editores nem terminaram de ler, e questionaram se não havia mais histórias de hobbits. Nesse caso, Tolkien sempre trabalhou naqueles contos, mas nunca com o afinco de publicá-los, embora desejasse sempre.   
Editado pelo seu filho Christopher Tolkien, e publicado em 1977, O Silmarillion continuou sendo uma obra incompleta, mas essencial para aqueles que amaram ler O Hobbit e O Senhor dos Anéis, contendo todo um compêndio de mito-poesias importantes para o entendimento do universo Eä onde se encontram as terras como Valinor, Númenor e é claro, a Terra-Média.

Nightfall in Middle-Earth contém muitos detalhes entusiasmados. A começar pela capa, de um cuidado belíssimo para retratar uma passagem importante no legendarium tolkieniano:


Na imagem, Lúthien, a mais bela filha de Eru Illúvatar (nada mais do que Deus - criador de todas as coisas) está com Morgoth – o primeiro Senhor do Escuro. 
Em a Balada de Béren e Lúthien, Lúthien, a filha dos elfos Melian e Thingol, dança na floresta sob a luz do luar e nesse instante, Beren, um homem – e por isso, mortal – se apaixona por ela. Por serem de “raças” diferentes eles vivem um relacionamento às escondidas.
Supõe-se que Tolkien tenha se inspirado na própria vida para escrever esse conto. Quando jovem, órfão, o padre Francis (seu tutor) descobriu que ele havia de apaixonado pela também órfã, Edith Bratt, e o proibiu de se encontrar com ela até ter alcançado a maioridade e adquirido uma bolsa de estudos. Depois dos contratempos e desencontros, Edith torna-se esposa de Tolkien e essa narrativa o acompanhou: na lápide de ambos lemos o nome de Edith com a inscrição “Lúthien”, enquanto para Tolkien, está escrito logo abaixo “Beren”.



A declaração de amor é bem bonita e a história fantástica, cheia de reviravoltas.  Beren e Lúthien passam por uma provação: o pai, Thingol, coloca um preço na filha. Se Beren conseguisse pegar uma das jóias (silmarils) da coroa de ferro de Morgoth, poderia ficar com ela.
Prevendo sofrimento ao amado - Beren está sendo aprisionado nas masmorras do tenente de Morgoth, o nosso já conhecido Sauron - Lúthien escapa de um quarto que o pai a aprisiona e se caminha com o Cão de Valinor, Huan, para ajudar Beren no cativeiro. Lá acontece várias coisas, dentre elas, Lúthien se torna prisioneira de Morgoth, e num dado momento dança e canta para persuadi-lo. Eis a cena da capa, cuja história envolve muitas outras passagens e claro, um sofrimento terrível passado pelo casal e outros personagens.

Curioso é que essa cena está um pouco no nosso imaginário popular, mais recente e diretamente ligado à uma outra história, a de George Lucas, especificamente num de seus filmes da saga Star Wars - em Retorno de Jedi (1983). Sim, estou falando da cena da Princesa Leia com o biquíni dourado como cativa de um grande verme conhecido como Jabba The Hutt...


 A arte (da capa de NightFall in Middle-Earth e do encarte) é assinada por Andreas Marshall, mas as letras são de Hansi Kürsh – que pela primeira vez, não é creditado também como o baixista, mas sim Oliver Holzwarth, que tomou o posto para que Hansi se dedicasse inteiramente à função de vocalista.

O disco é longo, com 22 faixas, 65 minutos e 29 segundos de duração. Começa com War of Wrath como uma vinheta, um prelúdio. Na narração, com uma espécie de batalha ao fundo, sons de espadas e explosões, uma voz masculina rompe: é Sauron aconselhando seu mestre, Morgoth, a fugir dos triunfantes Valar na “Guerra da Ira”. Morgoth o manda embora numa voz dura e forte e pensa (em voz alta) sobre os eventos que levaram à sua derrota.
A faixa 2, Into The Storm é definitivamente uma boa música de abertura. Sua letra relata sobre Morgoth e Ungoliant – um espírito maligno que vaga pela Terra-Média em forma de uma gigantesca aranha – ambos fugindo de Valinor (um paradisíaco reino também conhecido como as Terras Imortais) depois de terem destruído as Duas Árvores - Telperion e Laurelin - as árvores de prata e ouro que trouxeram luz a Valinor. Ambos, Morgoth e Ungoliant, lutam pela posse das Silmarils.

A faixa seguinte é curta: Lammoth é atmosférica, e compõe um grito desesperado de Morgoth que convoca os Balrogs para combater Ungoliant. A vinheta nos prepara para a quarta faixa, um hino dos bardos: Nightfall é uma das favoritas em 10 entre 10 fãs do Blind Guardian, que nos provoca a cantar junto:


Emocionada, a música trata de Fëanor e seus sete filhos que lamentam a destruição causada por Morgoth, entre elas o assassinato de Finwë, pai de Fëanor. Todos juram vingar-se dele, apesar da desaprovação dos Valar.

The Minstrel é sobre Maglor, um dos filhos de Fëanor que compõe a música "The Fall of the Noldor", baseada em assassinato do rei, seu avô. É uma peça pequena, de 33 segundos, acústica, com uma um trecho cantado por Hansi acompanhado de um violão.
Ela nos atenta para a eletrizante e bem trabalhada Curse of FëanorNela, Fëanor expressa sua ira e raiva e relaciona os delitos que comete, principalmente o assassinato do rei, na busca por vingar-se de Morgoth.
Captured é mais uma vinheta. Como o nome diz, fala em uma "captura"; representa o aprisionamento de Maedhros, mais um filho de Fëanor, acorrentando-o às montanhas Thangorodrim. Assim, a faixa 8 que vem em seguida, Blood Tears Maedhros relata os horrores de seu cativeiro e sua libertação por Fingon, filho mais velho de Fingolfin, meio-irmão de Fëanor.

A nona faixa do disco é também o primeiro single do álbum:



A capa mais uma vez, arrebenta, assim como a música, que tem uma levada ótima e uma letra épica, de outra parte de contos do O Silmarillion, desta vez sobre Turgon que, diante de derrota inevitável, constrói a cidade de Gondolin com o auxílio de Ulmo, o Vala Senhor das Águas, uma espécie de Poseidon da mitologia de Tolkien.



A décima faixa do disco, Face The Truth também funciona como introito para a música seguinte. Nela, Fingolfin reflete sobre o destino do povo de Noldor, sobre o qual e é o título da 11ª faixa - Noldor.

Fingolfin relata a passagem de seu exército dos campos gelados de Helcaraxë e também a profecia do Vala Mandos sobre o destino do seu povo, os Noldor. Essa profecia do Norte vai contra a decisão dos deles de deixarem Aman, aconselhando que se eles partissem, não deveriam retornar. Fingolfin reflete por si próprio e pela culpa de seu povo e "prevê" a sua derrota final.
A música é até um tanto arrastada, talvez até proposital, como uma forma de demonstrar o "feeling" das agruras sobre a queda dos Noldor.

Battle of Sudden Flames refere-se à batalha em que Morgoth quebra o cerco de Angband usando seus balrogs e dragões. As letras falam de como Barahir, da Casa de Bëor, e a grande perda de sua companhia, que acabou por salvar a vida do rei élfico Finrod Felagund e, em troca, Finrod fez um juramento de amizade a Barahir e a todos os seus parentes.

Uma das minhas músicas favoritas do Blind Guardian, que eu não me contenho em ouvir só uma vez, é a faixa 13: Time Stands Still (At the Iron Hill) 


Muito mais do que Nightfall (que é um clichê entre os fãs do Blind Guardian) eu escolho essa faixa como a minha favorita do álbum, pois me é a que mais impulsiona a ter razões de cantá-la "sob o luar" (risos). A letra volta a falar de Fingolfin, neste caso, no momento em que ele cavalga até os portões de Angband para desafiar Morgoth a um duelo. Fingolfin fere Morgoth sete vezes, mas o herói não resiste e acaba morto.

Recobrando o fôlego, vem The Dark Elf, em 23 segundos de um som de chuva e um rápido canto estilo gregoriano. "O elfo negro" é uma referência à Eöl, que seduziu a irmã de Turgon e foi pai de Maeglin, o futuro traidor do povo de Gondolin. A partir dessa, em Thorn, ouvimos uma semi balada de power metal virtuosíssima, contando sobre o cativeiro de Maeglin em Angband e Morgoth tentando converter Maeglin ao seu lado com ameaças e mentiras. O título da música refere-se aos arbustos de espinhos que escondiam os portões externos de Gondolin.

A 16ª faixa é uma balada triste e "caidona" de Nightfall in Middle-Earth, uma vez que The Eldar é sobre a despedida do rei élfico Finrod Felagund ao seu povo, morrendo de feridas sofridas ao salvar seu amigo Beren (o homem apaixonado por Lúthien) de um lobisomem, cumprindo assim seu juramento à Casa de Bëor. Triste, mas belíssima.

Nom the Wise é mais uma vinheta, onde Beren lamenta pela perda de seu amigo, Finrod. "Nóm" significa "sábio" e foi o nome dado a Finrod pelo antepassado de Beren, Bëor. Em seguida, a rápida When Sorrow Sang, é uma declaração de amor de Beren à princesa élfica Lúthien, bem como o seu fim - *spoiler*-  a sua morte promovida pelo lobo de Morgoth, Carcharoth . A última parte da música é sobre o Vala Mandos ouvindo a música de Luthien sobre seu sofrimento por ela e Beren serem de "raças diferentes" (eu seu que usar "raça" é um tanto pejorativo, mas não é o caso, posso afirmar).

A faixa 19, Out on the Water é um canto curto e refere-se à última morada de Beren e Lúthien. The Steadfast trás uma fala de Morgoth, que amaldiçoa seu prisioneiro Húrin (conhecido em élfico como "Steadfast") que se recusou a revelar o segredo das terras de Gondolin.
Em A Dark Passage, Morgoth pondera seu triunfo na quinta batalha. A música também relata as origens dos parentes dos homens e a maldição de Morgoth em Húrin para testemunhar o destino trágico de seus filhos (Os Filhos de Húrin é um livro póstumo organizado por Christopher Tolkien e é um dos livros mais trágicos - em termos de gênero - escritos pelo seu pai).

A vinheta Final Chapter (Thus Ends...) conclui o álbum, falando da vitória de Morgoth através da "traição do homem", mas também da esperança de que nada estaria acabado, e eles teriam um renovado dia.

Existem ainda, as faixas bônus que merecem adendos. Harvest of Sorrow é uma delas e aparece nas versões remasterizadas de 2007 e 2018 do álbum. Sua letra trata sobre Túrin, filho de Húrin, que lamenta a perda de sua irmã Niënor, numa parte tristíssima (que ainda teria conseqüências muito mais trágicas, à nível de Édipo Rei, de Sófocles)  muito bem colocada na canção dos bardos.


A música acima refere-se à remasterização do álbum lançado em 2018. Doom mostra um relato mais detalhado de Húrin sendo amaldiçoado por Morgoth. Uma versão ligeiramente reescrita aparece em uma edição limitada de Beyond the Red Mirror, o décimo disco do Blind Guardian, lançado em 2015), como um capítulo de epílogo. Além dela, The Tides of War é outra faixa do disco de 2018, e esta, a letra dá conta de Túrin chegando em Beleriand para enfrentar Morgoth, pensando também na queima dos navios Teleri em Losgar e na Maldição de Fëanor.

O álbum é longo e cheio de detalhes. Atrai até mesmo quem não leu O Silmarillion e se configura como o melhor disco baseado em Tolkien. Outras bandas, já mostradas aqui, apresentam uma ou outra música que tiveram como inspiração as histórias de Tolkien, mas Blind Guardian foi além e trouxe um álbum conceitual de contos considerados muito complexos até mesmo pelos especialistas tolkienianos. O valor de Nightfall in Middle-Earth é, sem dúvidas, imensurável.

Depois do trabalho hercúleo, o Blind Guardian retornaria com o seu A Night At The Opera apenas em 2002. Nesse disco, os bardos dariam "um tempo" em Tolkien.


Abraços afáveis!

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