Análise da interpretação não-verbal do filme Coringa


Neste mês ficou disponível nos canais da HBO o filme Coringa (2019). Se você não assistiu nos cinemas no ano passado, na ocasião do lançamento, nem assistiu depois que o ator Joaquim Phoenix levou a estatueta do Oscar para casa – como reconhecimento da sua performance como Joker – ainda dá tempo.


O longa rendeu um barulho considerável desde a sua produção até o seu lançamento. Uma das questões colocadas pelos críticos e fãs dos HQs da DC Comics concordava em um ponto: o personagem vilão mais famoso e mais complexo do Batman, não poderia ter um filme que contasse as suas origens, uma vez que não se sabe ao certo qual é a história real para Arthur Fleck ser o perturbado palhaço sanguinário.

Talvez o barulho tenha sido alto demais. Com a chegada do filme aos cinemas, a gente pode conferir o trabalho do diretor e roteirista Todd Phillips. Carregadíssimo de vários outros significados, intenções e interpretações que – ouso dizer – passa a ser um filme diferente para cada espectador. Há quem considere a construção do personagem que, ainda não é o Coringa, mas passa por diversas situações (reais ou imaginação?) que moldam o vilão que conhecemos.

Arthur é um homem adulto que nos é apresentado como alguém que sofre de uma doença mental e foi afetado por abusos decorrentes de violência, bullying. Ele é uma pessoa comum, apesar disso. Trabalha como palhaço de festas e mora com uma mãe, doente. Ele também é um aspirante a comediante de stand-up e nas horas vagas, assiste um programa de talk-show apresentado por Murray Franklin (interpretado por Robert de Niro).

Se você pensou em Taxi Driver e O Rei da Comédia, ambos estrelados por de Niro enquanto assistia ao filme, você captou bem as referências. No caso do filme de 1976 do diretor Martin Scorsese, as semelhanças entre Arthur e o personagem Travis Bickle ficam bem claras -  como uma homenagem - em várias referências bem diretas. Uma delas é a mais evidente: a famosa cena em que o taxista, já tomado pela loucura, simula dar um tiro na própria cabeça é vista também em Joker.
Já em O Rei da Comédia (também de Scorsese e lançado em 1982) a menção é mais direta. No longa da década de 80, Rupert Pupkin é um aspirante a stand up que ensaia e sonha com uma aparição num programa de talk-show apresentado por Jerry Langford (interpretado pelo saudoso Jerry Lewis). O personagem Pupkin também fica obsessivo e tem traços de loucura, pois leva ao extremo a necessidade de participar do programa como “um comediante profissional”.
Phillips trouxe justamente de Niro para encarnar o apresentador de talk-show – o durão Murray - que tanto entretém Arthur. E essa sacada é extraordinária.

Existem outras referências, mas o mais marcante no filme é um foco na interpretação que justificou o Oscar ao ator Joaquim Phoenix. O papel não-verbal que o ator desenvolveu junto com o diretor é algo realmente notável e talvez, tão impecável quanto o feito por Heather Ledger noutro longa, com foco no Batman. O Cavaleiro das Trevas de 2008  é comentado, até hoje como uma das melhores (e também polêmicas) entregas para o personagem palhaço de Gotham.

Apesar de Coringa ser um palhaço, ele não tem nada de feliz, e para esclarecer como ele é sem estar arquitetando crimes contra Bruce Wayne, era preciso mostrar de alguma forma a sua melancolia total, além da sua insanidade e propensão a se divertir com o caos. Juntamente com a trilha sonora de Hildur Guđnadóttir, a atmosfera extra para o filme é atingido com uma boa dose de sensações dramáticas, intensas e... tristes!
Além disso, a trilha conta com músicas conhecidas que são colocadas estrategicamente em momentos cruciais do longa, para clarear a transformação de espírito da personagem.
Quando ele está no seu camarim do trabalho, toca Everybody Plays the Fool na versão mais famosa do The Main Ingredient. Outra canção que aparece é interpretada por Frank Sinatra – apesar do título, Send In The Clowns é sobre uma desilusão amorosa e com a vida. Encaixa logicamente, com toda a melancolia da história ela chega ao filme, quando Fleck tem seus ataques de risos (nervosos) e 3 homens no metrô recitam a letra, o ameaçando.
Sinatra volta a dar o ar da graça no momento em que Arthur perdeu a mãe e decide pintar seu cabelo de verde, dançando de cuecas no banheiro de casa. Toca então That’s Life, canção composta em 1963 por Dean Kay e Kelly Gordon.

E por falar em trilha e música do filme, é quando chegamos ao ponto chave: a interpretação não-verbal fundamentada numa perspectiva objetiva do personagem: Arthur Fleck está no Coringa e Coringa contém Fleck, quando os dois se tornam um através da dança. É como se, quando Coringa assume o controle para tomar decisões e completar ações, que a dança permite o lado humano do personagem duplo - Arthur - em amolecer, relaxar e aceitar.

Em entrevista, o diretor Phillips explicou que ele e Phoenix enxergaram juntos uma qualidade em Arthur desde o começo: existia uma musicalidade no personagem que eles exploraram de forma contundente, diga-se. Segundo o diretor essa musicalidade transformada em dança para as telas, não estavam propriamente escritas no roteiro, mas que tem tom e sentido de “evolução” no personagem.

É como se Arthur/Coringa celebrasse o mundo dele mesmo, ainda que imperfeito e bagunçado; ele possui a dança como válvula de escape para seguir adiante. Basta reparar: assim que o Coringa toma controle e age (sobretudo de forma violenta e cínica), ele dança. A primeira vez que faz isso é quando ele comete os seus primeiros crimes – assassinando homens de Wall Street no metrô, ele entra em um banheiro público e entrega os primeiros passos que, depois ficam intensos e resolutos na famosa cena da escada.




Sem nenhum diálogo, a gente sente a profundidade dessas cenas, que parecem fazer o corpo do personagem se descolar do incidente dos crimes e receber, como um convite vitalício (para o domínio do Joker), como se fosse uma “dança da libertação”.
A cena da escada que – de forma um tanto medíocre, virou meme na internet – é entoada pela música Rock 'N' Roll (Part 2) de Gary Glitter. Completamente tomado pelo Coringa, a cena tem tudo para ser uma das mais interessantes do imaginário popular moderno.
A música seguinte é de quando Gotham está totalmente tomada pelo caos – pessoas vestidas com máscaras de palhaços vandalizam na rua... Ao som de White Room do Cream. Fantástico!

Com tudo isso, fica a pergunta: quantas vezes não procuramos refúgio na música? Colocamos aquele disco que nos emociona para tocar, para esquecemos por alguns minutos das coisas ruins e dos problemas que ainda nos atormentam sem solução?
Por um outro viés, pois  existe também a situação oposta: quando estamos aliviados por ter alcançado uma meta, um sucesso ou bônus, a gente vê tudo mais colorido e também mais musical, não é mesmo?

É mais ou menos isso que faz Coringa/Arthur interpretado por Joaquim Phoenix e idealizado pelo diretor Todd Phillips. E trabalhos como esse são, muito ricos. 

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