Elvis, de Baz Luhrmann, uma análise do parceiro Expedito Paz

Quem me segue há mais tempo ou me conhece fora das redes já deve ter me visto ou ouvido dizer que, desde que comecei a namorar com a Gilvania Ferreira, tornei-me fã de Elvis por osmose. Antes de nosso relacionamento começar só conhecia umas poucas músicas e não sabia quase nada sobre ele em si – meus pais não eram fãs, nem ninguém próximo, e na época que comecei a acompanhar música se falava bem pouco dele no que lia ou ouvia. O tempo passou e hoje em dia a história é bem outra, claro. Então fui assistir a “Elvis” com mente de fã, mas com a cabeça aberta.


Baz Luhrmann pegou a história de Elvis e imprimiu seu peculiar estilo exagerado, colorido, grandioso que já tinha apresentado em todos os seus filmes anteriores desde “Vem Dançar Comigo” lá do começo dos anos 90. E aqui temos um trabalho de produção, cenários, figurinos e tudo mais primoroso.
Na parte narrativa, Luhrmann fez uma escolha controversa, mas que acabou funcionando perfeitamente para o que pretendia fazer: ao colocar o filme sendo narrado sob o ponto de vista do famigerado Coronel Tom Parker, empresário de Elvis, cria uma história que permite que o roteiro passe por cima de inconsistências de data, ignore certos aspectos da vida e da carreira do cantor, e foque no principal: a estrela, o quase super-herói que Elvis se tornava quando estava num palco.
Desde a primeira cena de show, Elvis, com sua energia, carisma e dança, ao mesmo tempo assusta a plateia masculina mais conservadora e enlouquece as mulheres. Nas palavras do Coronel, Elvis estava fazendo as meninas sentirem coisas que não sabiam que queriam sentir ao ver Elvis cantando e dançando lá em cima. E os closes, poses, tudo favorece a histeria coletiva.
Antes, exibem Elvis, ainda criança, vivendo num bairro predominante negro em tempos bem bicudos, tendo contato com o blues e o gospel da época, e Luhrmann monta a cena como se fosse um super-herói recebendo ou descobrindo seus poderes pela primeira vez (como Elvis era fã do então Capitão Marvel, hoje Shazam, o filme usa espertamente várias referências de quadrinhos e heróis ao longo da trama). A montagem da cena, com blues e gospel se alternando na trilha enquanto Elvis está na igreja, é espetacular.

E assim o filme segue mostrando momentos de Elvis poderoso no palco, mas frágil e, pelas circunstâncias de seu contrato leonino com o Coronel, submisso e com medo. Demora bastante para vermos Elvis ter noção de que essa relação jogou a carreira dele num buraco difícil de sair.
O filme mostra bem o pânico moral que Elvis causava nos conservadores e racistas da época – lembrando que nos anos 50 a segregação ainda era institucionalizada por lei em vários estados e, após uma cena de show que termina em tumulto ao som de “Trouble”, passamos a era de Elvis no Exército americano. A passagem em si é curta no filme, mas serve para a trama trazer dois fatos importantes demais na vida de Elvis: a morte da mãe, quando ele ainda estava no treinamento básico nos EUA, e quando ele, já na Alemanha, conhece sua futura esposa, Priscilla, que era filha de um oficial da Força Aérea americana.
De forma inteligente, embora o filme mostre o impacto de Elvis nas mulheres no começo e ao longo do filme o mostre em algumas cenas com elas, o filme não vai fundo na vida amorosa do artista. Em certo momento o Coronel chega a dizer que não esperava que Elvis fosse encontrar o amor durante sua estadia com o Exército e, em entrelinhas, que mulheres eram distrações pra carreira.
O filme também aborda pouco, e de uma forma não muito positiva, a carreira de Elvis no cinema. Elvis queria ser ator dramático, inspirado principalmente em James Dean, mas no fim das contas, embora fosse bem pago, praticamente só fez comédias musicais. Porém, aqui há uma ótima recriação da cena de filme em que Elvis canta “A Little Less Conversation” no filme “Viva Um Pouquinho, Ame Um Pouquinho” (Live a Little, Love a Little) e uma outra que mistura uma imagem de Austin como Elvis maquiado como se fosse uma marionete de madeira, manipulado pelo Coronel fazendo filmes repetitivos, baratos e cansativos, ao som de um mix  “Edge of Reality”, canção do mesmo “Ame um Pouquinho...” que podemos dizer que era um leve flerte de Elvis com o psicodélico da época (o filme e a canção são de 1968) e que retrata bem o buraco em que o Rei do Rock estava metido àquela altura.
Na parte dedicada ao especial para a NBC em 1968, que acabou ressuscitando comercial e artisticamente a carreira de Elvis, o filme cria uma versão um tanto fantasiosa da situação, exibindo um divertido cabo de guerra entre o Coronel e os patrocinadores, que queriam um especial de Natal bem familiar, com Elvis e os produtores do especial, que pensaram num formato que exibisse as várias influências e referências da carreira do cantor, desde os rocks mais básicos dos anos 50, passando pelo gospel e, influenciado pela repercussão dos assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, fechar o show com “If I Can Dream”, um dos maiores momentos de sua carreira.
O filme segue para a volta de Elvis aos palcos após vários anos e os shows em Las Vegas que deram origem ao álbum e ao filme “Elvis é Assim” (That’s the Way it Is). Aqui o filme brilha mostrando os ensaios e os shows em si, e em certos momentos, ao misturar cenas com Austin com imagens reais de Elvis, você fica se perguntando o que foi verdadeiro e o que é coisa do filme. Essa parte vai render bastante quando o filme sair em streaming ou em DVD ou Blu-Ray, porque aí vai dar pra pausar e ficar analisando... nessas cenas de shows, recriaram vários dos jumpsuits que Elvis usava nos palcos com uma precisão de detalhes impressionante. É um negócio fenomenal.


O filme a partir daí segue com Elvis fazendo shows, mostra levemente o vício em remédios que o artista tinha (referendado pelo próprio Coronel e pelo famigerado Dr. Nick, o médico que receitava as pílulas) e o conflito dele e de alguns de seus colegas com o empresário para que Elvis fizesse shows mundo afora. Porém, Parker sempre conseguia enrolar o cantor e arrumar desculpas pra mantê-lo “preso” nos EUA. Também mostram Priscilla contra essas atitudes do Coronel, como se esta incentivasse Elvis a se livrar dele para poder voar bem longe.
Mais para o fim do filme há outras cenas de conflito entre Elvis e o Coronel, incluindo uma onde o cantor demite o empresário em cima do palco (licença poética do diretor e do roteiro bem grandes aqui), mas a coisa funciona pra efeito bem dramático. E assim o filme vai caminhando para o seu fim, com um Elvis fazendo shows repetitivos, separado da esposa e entrando em franca decadência física e mental.
Porém, no fim há uma enorme surpresa que é uma reprodução, parte com Austin e parte usando as imagens reais de Elvis, de “Unchained Melody” cantada por ele em seu último show filmado. Ali você percebe o péssimo estado físico e a tristeza no olhar de Elvis, mas sua voz, sua energia pra cantar e expressar sua arte estavam intactas. Elvis infelizmente se foi cedo demais. E o maldito Coronel ainda viveu mais vinte anos após isso, ainda que tenha morrido num completo ostracismo.


O uso da música no filme lembra os de outros filmes de Luhrmann, com um tipo de jukebox musical misturando originais e versões remix de canções de Elvis com canções de outros artistas como Doja Cat, tentando estabelecer que a conexão de ritmos e influências que o Rei do Rock trouxe desde os anos 50 ainda está por aí até hoje. Tem blues, gospel, country e muito mais, e giram bastante a trama em cima do primeiro sucesso de Elvis, “That’s All Right”, seja com Austin Butler - sim, as músicas do jovem Elvis no filme são cantadas pelo próprio ator e ele se sai lindamente - cantando no começo do filme a versões blues ao longo das duas horas e quarenta minutos de filme. Outra canção bastante usada é “Suspicious Minds”, não apenas pelo seu significado musical, mas como um norte para a trama, onde Elvis diz “estar numa armadilha da qual não consegue sair”. Embora a música em si se encaixe mais em ciúmes num relacionamento amoroso, no filme expressa bem toda a dinâmica de Elvis com o Coronel. Vale bem a pena ir atrás das quase duas horas de material lançados nos principais serviços de streaming (uma versão física da trilha deve sair no final deste mês de julho, mas sem o mesmo conteúdo).
Finalizando, embora ignore pontos mais polêmicos da carreira para não mexer em vespeiros (vida amorosa, vício em remédios, uma certa alienação com o mundo, sua predileção por armas, seu encontro bizarro com Nixon etc.), “Elvis” é um enorme tributo a vida, a carreira e ao legado de Elvis na música. Que, no fim, é o que fica.
Quem puder, assista no cinema. E lá, não saia antes do fim dos créditos. Até lá a assinatura visual de Baz Luhrmann é bem marcante.

Expedito Paz é jornalista, apaixonado pelos anos 80, um grande amigo e não bastasse: é santista.

Comentários