Blind Guardian lança "The God Machine" e retoma as raízes sem soar repetitivo

No dia 2 de setembro a comunidade tolkieniana estava em polvorosa! Não era para menos, haviam expectativas para a data, mesmo que essa data representasse, para muitos fãs do autor J. R. R. Tolkien, um misto de tristeza e obrigação de homenagem ao professor, afinal, foi nesse dia que ele faleceu, lá em 1973.

Na última sexta-feira, então, muitos (eu inclusa) lembramos dele com saudosismo pelos 49 anos sem ele, mas defendemos a sua importância e consideramos, com unanimidade, que está muito presente, já que somos agraciados por diversas publicações de seus escritos minuciosamente organizados e compilados, desde então, graças ao seu filho Christopher Tolkien, herdeiro de todo o espólio literário do pai. Apesar do falecimento de Christopher em 2020, ainda tivemos muitas publicações inéditas, com outros “schollars” fazendo o trabalho de selecionar e organizar, e teremos muitas novidades a caminho de termos acesso, sobre sua complexa obra produzida aos pedacinhos ao longo da vida, em português, pela competente editora HarperCollins Brasil.

No entanto, esse ano, o dia 2 foi diferente: tivemos dois “eventos” que arregalou os ânimos dos admiradores do autor. Um deles, a estreia da série O Senhor dos Anéis: Anéis de Poder da Amazon Prime Video, adaptada (e talvez seja melhor começarmos a usar o termo “baseada”, mas isso fica para uma outra conversa) da obra mais conhecida de Tolkien – O Senhor dos Anéis – , mais especificamente focando no que é relatado brevemente nos apêndices do romance, sobre as primevas artimanhas do Senhor do Escuro, Sauron.
Dois episódios da série foram lançados na plataforma às 22hs do dia 01 e houve um evento em cinema na capital paulista para alguns seletos fãs, como se fossem um “premiere” (nunca quis tanto estar em São Paulo como na última quinta-feira). Apesar de algumas polêmicas, é importante lembrar que audiovisual e literatura são artes completamente diferentes. Uma, tende a restringir a imaginação individual enquanto a segunda, lhe oferece uma liberdade muito maior. Levando isso em conta, as brigas seriam menores.

Mas vamos ao que de fato interessa: o outro momento acontecido nessa data pode parecer estranho aos desavisados, mas faz sentido para muitos fãs da banda: o Blind Guardian lançou seu 12º disco, intitulado The God Machine. Apesar de nenhuma referência à Tolkien neste disco, eu – assim como muitos outros – chegaram à banda alemã por conta do autor britânico de fantasia, embora e o contrário, também se faça fato.

Pois bem, já falamos muito disso aqui no Musique-se, das referências de literatura fantástica e de fantasia nas letras do Blind Guardian, algo muito característico do Power Metal. Fãs do Tolkien, e tendo até um álbum inteiro sobre a mitologia criada pelo autor, eles fizeram a sua fama e são conhecidos por alguns, por conta dessa referência. Lá por volta de 1984, com o nome de Lucifer’s Heritage eles se formaram e logo, modificaram o som para a uma pegada mais fantástica e estilo Speed Metal, se tornando Blind Guardian, em 1987.

35 anos depois, o que mais poderiam entregar em termos de inéditas? Tínhamos então, uma grande oportunidade para conferirmos com o lançamento de mais um trabalho, justo numa emblemática data e para quem acompanhou o lançamento dos singles com certa esperteza, teve uma noção do que estava por vir do álbum completo, composto de 9 faixas.

A pegada mística e teatral permanece sendo uma das características da performance do vocalista Hansi Kürsch, que apesar das quase quatro décadas como vocalista da banda, não deixa a desejar em capacidade de alcance e potência. Ele mostra excelência vocal e interpretativa em todas as faixas do novo disco.

Aquilo que trouxe muito interesse e admiração dos fãs é aquele misto de magia, teatralidade e arrebatamento bombástico tanto em termos sonoros como também nas letras – que para muitos, é o que proporciona o interesse pelos lançamentos da banda – ainda segue firme e forte. Os riffs também não rondam a mesmice e carregam o virtuosismo sem exageros, com o acompanhamento sinfônico sempre na medida exata para deixar aquele tom épico quase palpável.

Mas não acredite se, ao ler o parágrafo acima, que se trata somente de mais um disco de uma banda de Power Metal alemã das antigas, com o artefato de um álbum conceitual e letras “dadas à nerdices”. Simplista demais e até mesmo, injusto. O Blind Guardian lançou um disco que enche os ouvidos dos fãs e os torna plenos e satisfeitos.

Divulgação: Capa 

Antes de falarmos das músicas, um adendo: as capas do Blind Guardiam são sempre muito bonitas, com referências medievais, mas sempre em tons mais escuros. Essa é a primeira vez, desde 1988 com Batallions of Fear, que uma arte com cores claras e vibrantes, quase clássica compõe a capa de um álbum de estúdio. 

O primeiro single foi Deliver Us From Evil (cujo vídeo pode ser assistido aqui) e que também abre o disco e nos remete, assim como a faixa 2, à Somewhere Far Beyond de 1992, um dos primeiros discos que conheci da banda, lá nos idos de 2001-02, quando tomei contato com a literatura de Tolkien.
A letra de Deliver Us From Evil tem um pé na literatura, mas não é bem “fantástica!”: a referência é a peça de Arthur Miller, The Crucible de 1953 – uma dramatização com o mote do julgamento das bruxas de Salem, em Massachusetts, EUA, nos anos de 1692-93.

A segunda faixa, Damnation, bebe da mesma fonte sonora como já dissemos, e a letra aponta a série de fantasia contemporânea, The Kingkiller Chronicle de Patrick Rothfuss.

O segundo single é da terceira faixa do disco The God Machine. Secrets of the American Gods (assista o vídeo, clicando aqui) tem uma pegada mais metal progressivo, e se volta à Neil Gaiman, autor em alta inclusive pela adaptação de sua grande obra, Sandman, laçada recentemente pela Netflix. No caso da música, se trata do livro Deuses Americanos (2011) de Gaiman – e que também há uma série que não vingou muito bem e foi cancelada na terceira temporada (disponível na Prime Video).

Uma das minhas favoritas do disco é Violent Shadows onde Hansi simplesmente mostra toda sua versatilidade e peso, e o bom caldo da banda está nos riffs da dupla de guitarristas André Olbrich e Marcus Siepen. A letra da música está ancorada em um dos personagens da série de livros de fantasia de Brandon Sanderson, chamada de The Stormlight Archives (2010 -).

Life Beyond the Spheres não tem nenhuma referência específica, e trataria da criação do Universo e a evolução do tempo e do espaço. O feeling de criação de um mundo é totalmente sentido com sonoridade da música e o misto sinfônico com o metal é de arrepiar.

O gancho é bem dado para a faixa seguinte, Architects of Doom, que ambienta o tema de ficção científica, referindo-se à série dessa vertente chamada Battlestar Galactica, original de 1978. Aqueles níveis acelerados e raivosos do Speed Metal estão contidos aqui com toda a força possível.

Tudo bem, pois a calmaria vem com a sétima faixa, Let It Be No More, cuja a letra é de cunho pessoal e poetisa sobre o falecimento da mãe de Hansi. É uma bela música, tocante e com um refrão dramático e muito bonito.  

O último single foi lançado junto com os anúncios da data do novo disco, o título, a capa e a playlist. Blood of The Elves tem os dois pés fincados no Power Metal característico do Blind Guardian, e uma letra muito familiar. O som acabou me remetendo à Mirror, Mirror do álbum Nightwfall in Middle-Earth de 1998, o meu disco favorito da banda (e que recentemente, adquiri uma cópia para minha coleção e estou felicíssima por isso, hehehe...). 
Eis o vídeo do terceiro single de The God Machine com um visual em cores vibrantes e imagens rápidas:

Como foi revelado no lançamento, Blood of The Elves é inspirado no primeiro romance da série The Witcher - Blood of Elves (1994), do escritor polonês Andrzej Sapkowski e que também tem uma produção audiovisual, protagonizado pelo estonteante ator britânico, Henry Cavill. 

Chegamos, logo depois, com entusiasmo, e já querendo mais, à última faixa do disco: Destiny é inspirada conto de fadas de Hans Christian Andersen, The Ice Maiden (em tradução: "A Donzela de Gelo") publicada em 1861. Fechando com chave de ouro, como uma martelada no ouvido – no bom sentido – é claro! 

A crítica tem apontado The God Machine como o melhor disco desde Imaginations From The Other Side de 1995. Isso soa bem para os músicos, já que para a divulgação, em meados de maio deste ano, Hansi disse em entrevistas, que eles não estavam querendo repetir totalmente o que já fizeram no começo da década de 1990 e nem queriam seguir o caminho de sonoridade complexa que vinham fazendo. Quiseram e conseguiram retomar o que estavam negligenciando nos últimos álbuns, mais voltados à um metal progressivo, e o resultado é mais que excelente.
Quanto à esse retorno às raízes, posso dizer que é muito bem-vindo, gratificante e não soa em nada, repetitivo. Vale muito a pena conferir!

Aproveitem a deixa e ouçam, pelo Spotify (ou outra plataforma de sua preferência):

Abraços afáveis e Musique-se!

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