Influência da literatura de Tolkien na música - parte IV - Genesis

Seguimos com nossa série sobre as influências da literatura de Tolkien, comentando sobre algumas que absorveram algo de sua literatura e reproduziu em grandes sons. 

Hoje, teremos a banda inglesa Genesis, e uma (possível - não confirmada) referência à J. R. R. Tolkien. Criada em 1967, seus fundadores Anthony Phillips, Peter Gabriel, Mike Rutherford e Tony Banks iniciaram o projeto quando ainda estudavam na Charterhouse School. 
A banda tem dois níveis ao longo da carreira: uma, com Peter Gabriel como vocalista, com músicas  e instrumentação mais complexas e até apresentações meio teatrais. O outro nível é a partir de 1975, com a saída de Peter. Ele foi então substituído por Phil Collins. Com ele, a banda tomou um rumo diferente: estavam mais voltados ao pop, tornaram-se mais acessíveis ao mercado fonográfico. Parece um tanto óbvio delimitar que falaremos sobre a fase inicial da banda, com Peter Gabriel. 

Trespass é o segundo álbum de estúdio da banda à ocasião considerada rock progressivo. Em outubro deste ano fará cinquenta anos desde o seu lançamento. É bastante coisa. 

Muita coisa também é a extensão de cinco das seis faixas do disco. A mais curta é Dusk, com quatro minutos e treze segundos e a mais longa, The Knife com quase nove minutos. 
Mas não é sobre elas que comentaremos aqui, e sim sobre Stagnation.

Não está sendo novidade mais, já que apresentamos nas outras partes da série, que havia um romance entre as bandas do rock progressivo e a literatura do Tolkien. Embora não haja nenhuma confirmação explícita por parte dos membros em 1970, o Genesis absorveu do autor inglês alguma coisa, afinal, ele era uma tendência da época.

Numa pesquisa rápida, encontramos algo que oferece umas explicações bem estranhas que não corroborariam com a nossa série. Mas vamos à música, primeiro?


Não conheço muito sobre Genesis, peço perdão por isso. Conheci Stagnation, na adolescência, obviamente por querer estar à par de tudo que envolvesse Tolkien. Não à toa (caso ainda não tenha mencionado) estudo o autor desde o fim da minha graduação em História, em meados de 2012. Defendi uma monografia falando sobre o "mal" e o "fascínio" em sua literatura, concatenando a biografia do autor, os elementos de estudo do mesmo e sua produção literária. Mais madura, escrevi uma dissertação de mestrado (defendida em 2017) onde lancei um olhar critico à literatura de fantasia e pontuei Tolkien sob aspectos estéticos retirando-o da ideia vigente que uma obra literária - independente do gênero - precisa, por obrigação, falar sempre do tempo na qual foi produzida. 
Penso que, se assim fosse, a literatura de Tolkien não teria tido diversas "ressignificações". Por exemplo: O Senhor dos Anéis foi publicado em 1954. Diziam os críticos, se tratar de uma representação alegórica da Segunda Guerra Mundial. O autor foi enfático no prefácio da segunda edição: se a história se "parecia" com qualquer contexto histórico-político nada mais era que uma coincidência, já que a narrativa estava sendo desenvolvida muito antes dos eventos da guerra começarem a tomar força. 
Um pouco mais de 10 anos desde a primeira publicação, a mesma obra foi usada pelo movimento da contra-cultura como obra exemplo de sociedade desejada, especialmente no aspecto medieval, simples, pacato e rural em que os hobbits viviam.
Nos anos 2000, com os filmes de Peter Jackson, a história tomou outras interpretações, e até mesmo, com referência a guerra contra grupos islâmicos do Afeganistão promovida pelo presidente norte americano George W. Bush após o ataque de 11 de setembro.

Numa pequena pesquisa que fiz um tempo atrás trazia a informação: Stagnation do disco Trespass de 1970 do Genesis retrataria nas letras um sobrevivente de um ataque nuclear. 
A música saiu alguns meses depois de Ramble On do Led Zeppelin. Não darei spoiler mais outra banda lançava uma música em referência à um dos personagens mais famosos de Tolkien no mesmo ano de 1970 (falaremos sobre, semana que vem!) Estavam todos numa grande vibe do "LOTR rock" (Lord Of The Rings) na década de 70 e isso com certeza gerou uma comoção de fãs encontraram no meio da letra algo "tokieniano".

Stagnation não tem nenhum indício explícito sobre a Terra-Média. Apesar de quase acústica a atmosfera pode ser convidativa para a temática. A letra é envolta de simbolismos, nada muito escancarado. Percebemos, no começo que se trata de alguém que viu ou compreende a morte:

Here today the red sky tells its tale

But the only listening eyes are mine
(Hoje o céu vermelho conta a sua estória / 
Mas os únicos olhos a ouvir são os meus)

A seguir soa como se estivéssemos diante de um alguém que vive isolado de todos, preso à algo, sofrendo perdido e em conflito por alguma ação ruim que tenha cometido no passado:

Wait, there still is time for washing in the pool
Wash away the past
Moon, my long lost friend is smiling from above
Smiling at my tears
Come, we'll walk the path that takes us to my home  
(Espere, ainda há tempo para banhar-se na piscina
 / Limpar-se do passado /  Lua, minha amiga há tanto perdida está rindo aí de cima / Rindo de minhas lágrimas / Venha, vamos percorrer o caminho que nos levará à minha casa)

É aí que talvez possamos dar razão à referência de Tolkien na letra encontrada pelos fãs. 
Em O Hobbit, Bilbo acaba caindo numa caverna e se perdendo de seus companheiros por algumas horas. Nessa caverna, Bilbo encontra um objeto brilhante: um anel de ouro que viria ser o fio condutor da história do O Senhor dos Anéis, sendo então, o Um Anel na mitologia. Ali também, ele é encurralado pela criatura Gollum, o "dono" da joia. O nome "gollum" vem do som que faz, soando como se estivesse engasgado. Até aquele ponto da narrativa, não se sabe quem é Gollum. Mas no compêndio de histórias do autor sabemos que ele foi Sméagol, um hobbit comum que fora corrompido pela ganância em possuir o anel mágico.

Lembram de outras partes desta série que mencionei sobre Isildur? No primeiro embate contra Sauron, Isildur, líder dos homens, cortou o Um Anel das mãos do Senhor do Escuro, enfraquecendo-o. Pois bem. Isildur foi aconselhado pelo elfo Elrond a destruir a joia para que acabasse de vez com Sauron. Mas o homem, fraco, acabou seduzido pelo Anel e não o lançou no fogo da Montanha da Perdição.
Corrompido, Isildur fugiu do seu povo e acabou morto em uma emboscada de orcs. Contava-se (até os eventos com Bilbo e mais tarde, seu sobrinho Frodo na Guerra do Anel) que o objeto o "abandonou" e acabou perdido "para sempre". 
Algum tempo depois, nas mediações do Condado, os hobbits Sméagol e seu primo Déagol foram pescar. Déagol caiu no rio e avistou o Anel nas profundezas da água. Fascinado pela joia, ele a ostentou ao primo quando voltou à margem. Sméagol queria o Anel para si, também ficou atraído. Pedia ao primo que o entregasse. Numa luta, Sméagol assassinou o primo e ficou com o objeto para si. 

O personagem acabou criando uma outra identidade dominada totalmente pelos "mandos" do Um Anel. Gollum era o lado que respondia pela influência maléfica que o Anel provoca. Sméagol era o hobbit subserviente à esse "ser" muito mais poderoso. 
Banido de casa, ele vagou pela Terra-Média tendo o "precioso" como a única companhia. Aos poucos, foi enfraquecendo e tomando características animalescas, vivendo em uma caverna e se alimentando de peixes. Ele nunca poderia retornar, pela tormenta que vivia.

Will I wait forever, besides the silent mirror
And fish for bitter minnows amongst the weeds and slimy water.
(E eu vou esperar para sempre ao lado do espelho silencioso / Pescando peixes ariscos / Entre plantas daninhas e águas viscosas)

é esse é o trecho da canção de referência que os fãs encontraram e associaram à Gollum. Para quem tem os filmes mais vividos na memória, Gollum pescava com as mãos (existe até uma cena em Minas Tirith na segunda parte - As Duas Torres - que mostra isso) e dialogava com seu "outro eu" - o precioso, através da imagem num lago sob a luz da lua (essa cena está em O Retorno do Rei). 

Especificamente aqui, mais do que as postagens do Led Zeppelin e Rush, fica bem claro tudo aquilo que já explicitamos sobre interpretação das letras. O que se procura nelas, acaba por achar. 
E por falar em achar, aguardo o feedback de vocês com mais esse capítulo, certo? O que está mais propicio de estar por trás da motivação da letra? Um história de um sobrevivente nuclear ou simbolismos referentes um dos personagens mais complexos do autor inglês?

Abraços afáveis e Musique-se!

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