Influência da literatura de Tolkien na música - parte III - Rush

O ano de 2020 chegou batendo forte na gente. Não chegamos ao fim de janeiro e perdemos intelectuais, literatos, músicos e esportistas que farão muita falta. 
Comecei essa série pelo falecimento do filho do Tolkien, Christopher. Uns dias antes partia para o plano espiritual, Neil Peart, baterista do Rush. 
Para quem está chegando agora, o Musique-se lançou uma bela postagem de homenagem logo após o falecimento do músico. Segue o link direto do texto assinado pelo Ron Groo, clicando aqui.

Embora essas situações tristes estejam à espreita, há pequenos consolos: a contribuição, o legado deixado por esses grandes nomes, que é eterno e nos conforta. 
Após um longo texto sobre a contribuição de Tolkien para a cultura, e os detalhes da influência do mesmo em algumas das icônicas obras do Led Zeppelin, hoje convido a vocês a acompanharem comigo, um pouco sobre a junção Tolkien e a banda canadense, Rush. 

Estamos no tal ano de 1968, quando o Rush surgia na cidade de Toronto. A banda era composta pelo baixista, tecladista e vocalista principal Geddy Lee, pelo guitarrista e backing vocal Alex Lifeson e pelo baterista, percussionista e letrista Neil Peart. A formação original da banda passou por algumas modificações entre 1968 e 1974, alcançando sua formação definitiva com Peart, substituindo John Rutsey, antigo baterista da banda, em 74.

O Rush ficou conhecido com um estilo eclético e a grande habilidade de seus músicos. Diria até que Rush é uma das bandas mais complexas do cenário musical nas décadas de 60 e 70, muito também pela letras serem um tanto difíceis de assimilar. Com uma atmosfera social e ambiental, as músicas misturavam ficção científica, fantasia e filosofia de uma forma bastante inteligente. 
A plataforma de influências base eram as mais corriqueiras: o blues e o rock, moldaram os primeiros álbuns. Eles passaram por fases flertando com o hard rock e com o rock progressivo - esse último é aquele estilo com as quais se define os canadenses. 

Conforme bem mencionado pelo Ron Groo, Neil Peart impressionou os colegas de banda, além da sua técnica na bateria, também pela quantidade de livros que havia em seu carro. Seu gosto pela leitura o levou a ser o principal letrista já que Geddy dava poucos sinais de interesse em escrever. Ele e Alex focaram nos arranjos instrumentais enquanto Peart trazia a sua bela contribuição enquanto compositor das letras. 

Aprendemos na escola (ou não mais?) que ler melhora o vocabulário e te ensina, muito mais do que qualquer outra coisa, a escrever bem.  Vocês devem se lembrar também que, na primeira parte dessa série mencionei a questão das interpretações de textos. Recortei passagens da história de "O Senhor dos Anéis" e "O Hobbti" como exemplos e coloquei que, se algumas pessoas procurassem qualquer razão para exaltar ou massacrar J. R. R. Tolkien, encontrariam.
Acrescento, depois de mencionar que o autor era um católico fervoroso, que muitos podem ler suas obras como uma fantasia conservadora, com aspectos até preconceituosos, pois procurariam dogmas de base cristã para "justificar" certas passagens e obviamente, acusar levianamente Tolkien de ser um moralista. 

Após a morte de Peart, fizeram isso com ele na web. Pinçaram uma entrevista de 1978, em que Neil expressa suas ideias referentes à política, formuladas a partir de obras da escritora Ayn Rand. Essa autora é conhecida por um sistema filosófico chamado de "objetivismo" que ela mesma descreveu como "o conceito do homem como um ser heroico, com sua própria felicidade como o propósito moral de sua vida, com a realização produtiva como sua atividade mais nobre e a razão como seu único absoluto".
Internautas (ainda podemos usar esse termo?) saltaram nas redes debatendo a influência dessa autora, inclusive na produção das letras do Rush e claro, fizeram aquela acusação normal de nossos obscuros tempos: a mania de colocar os outros numa caixinha com um rótulo em letras garrafais, como se isso bastasse para identificar qualquer indivíduo. No caso, indiciaram que Peart - sem chance de se defender pela interpretação dos obtusos de plantão - fizesse parte da horda dos fascistas.  

Ninguém mais está livre disso. Hoje, produzir qualquer tipo de conteúdo, seja ele intelectual ou artístico, estará pisando em ovos. 
Defendemos aqui uma relação de partilha sentimental com as artes o mais afastada possível das intrigas sócio-políticas. A relação com as artes deve ser direta: se arrepiou os pelos do braço, se tocou a sua alma e emocionou, não é necessário criar outras amarras, por vezes até ideológicas. 
Dito isso, finalizo a questão com: não importa se Peart era radical de direita, nem mesmo se Tolkien defendeu demais aspectos judaico-cristãos em seus escritos de fantasia. (Se é que fizeram isso como forma prejudicial ou coercitiva - o que duvido piamente.) 
É tudo uma questão de ótica. No caso de ambos, escreveram (letras e livros) belíssimos. E isso basta.

Tolkien e Peart tinham mais em comum do que podemos imaginar. Ambos eram chamados pelos fãs e colegas de "professor". Ambos também tinham em mente, aspectos individuais que os identificavam perante o demais, além de escapismos e consciência morais inequívocos. No aspecto artístico, estudavam e liam muito. O reflexo disso era uma minuciosa e metódica forma de produzir e criar obras que encantaram os chamados "nerds" do mundo inteiro. Ambos eram introspectivos e mestres em se expressar através de suas artes.

Fly By Night de 1975 foi o primeiro álbum de Peart como baterista oficial da banda. E a música Rivendell é uma das melhores músicas referentes ao famoso refúgio élfico da Terra-Média, aqui no nosso português brasileiro traduzido como Valfenda.



O clima da canção soa muito característico ao ambiente dos elfos. Para quem não conhece Rivendell, o refúgio élfico, o local aparece nos escritos de Tolkien pela primeira vez em O Hobbit  - quando o "rei" Elrond recebe Gandalf, os 13 anões e Bilbo enquanto passavam rumo a reconquista de Erebor. Lá, aproveitam e buscam conselhos com o mestre Elrond. A comitiva fica por lá pouco tempo, desfrutam de um descanso, como um spa. 


"Sunlight dances through the leaves
Soft winds stir the sighing trees
Lying in the warm grass
Feel the sun upon your face"
(A luz do sol dança através das folhas / Ventos suaves agitam as árvores que suspiram / Deitado na grama morna / Sinta o sol sobre seu rosto)

O ambiente trás um estado de bem estar, vigor renovado em quem passa ou vive ali. Bilbo se apaixona pelo lugar e anos mais tarde, passa a viver seus anos finais em Valfenda. Ali, o tempo parece não passar.


"Elven songs and endless nights
Sweet wine and soft relaxing lights
Time will never touch you
Here in this enchanted place"
(Canções élficas e noites sem fim / Vinho doce e leves luzes relaxantes / O tempo nunca lhe tocará / 
Aqui neste lugar encantado)

Acústica, a atmosfera com letra mais som se encaixa perfeitamente no tema de um local "histórico" da Terra-Média. Elrond e seu povo, se juntou aos Homens de Gondor na luta contra Sauron na Primeira Era. Isildur acabou sucumbindo ao poder do Anel quando cortou a jóia das mãos do Senhor do Escuro. Morto por uma emboscada de orcs, o Anel se perdeu, mas a família de Isildur sobreviveu em Rivendell.
Descendente dele, Aragorn confronta sempre o estigma de ser "fraco"como o antepassado durante a narrativa de o Senhor dos Anéis.

No trecho a seguir, a menção das Montanhas Nebulosas - "Misty Mountians" também contida na Misty Mountain Hop de Led Zeppelin:


"You feel theres something calling you
You're wanting to return
To where the Misty Mountains rise and friendly fires burn
A place you can escape the world
Where the Dark Lord cannot go
Peace of mind and sanctuary by Loudwaters flow"
(Você sente que algo lhe chama / Você quer retornar / Para onde as Montanhas Nebulosas erguem-se e fogos amigáveis queimam / Um lugar onde você pode escapar do mundo / Onde o senhor do escuro não pode ir / Paz de espírito e santuário ao fluir do Ruidoságua)

Rivendell está localizado no desfiladeiro do rio Bruinen e na base das "Misty Mountains". Para quem é mais familiarizado com os filmes, o rio Bruinen é aquele que Arwen - filha de Elrond - no resgate de Frodo, ela evoca as águas do rio para espantar os Espetros do Anel, que perseguem o hobbit em O Senhor dos Anéis e a Sociedade do Anel de 2001. No livro, Elrond envia Glorfindel e não a filha para salvar Frodo que foi atingido pelo Rei Bruxo de Angmar no Top do Vento e está delirante e padecendo. 

Ali também, Frodo se recupera pelos poderes de cura do elfo Elrond e é salvo para continuar a sua jornada. Ali também, Elrond convoca todos os chefes de reinos da Terra-Média para decidirem quem arcará com a missão de destruir o Um Anel.

"Ive traveled now for many miles
It feels so good to see the smiles of
Friends who never left your mind
When you were far away"
(Viajei agora por muitas milhas / É tão bom ver os sorrisos de / Amigos que nunca partiram de sua mente / Quando você esteve distante)

Os hobbits, em especial Bilbo, e depois Sam e Frodo, se encantam com o local.
Bilbo, assim que se "desfaz" do Anel, parte numa nova aventura e Elrond concede a ele um lugar de morada em Valfenda. Quando retornou da reconquista de Erebor, ele era um hobbit muito sábio, que havia visto muita coisa. As crianças do Condado cresciam ouvindo as história de Bilbo: como eram os elfos e o mestre Elrond, Thorin Oakshield, os Trolls de pedra e Smaug, o dragão.


"We feel the coming of a new day
Darkness gives way to light a new way
Stop here for a while until the world,
The world calls you away"
(Sentimos a vinda de um novo dia / A escuridão dá passagem à luz uma nova passagem / Pare aqui por um tempo até que o mundo, / O mundo lhe chame para ir embora)

Todos os personagens que chegam à Rivendell, chegam após uma jornada. No caso de Frodo e Bilbo, ambos passam por ali para seguirem seus destinos. Os hobbits, em especial Bilbo, e depois Sam e Frodo, se encantam pelo lugar. Há passagens que contam o quanto Sam deseja conhecer os elfos que tanto Bilbo falava.

O clima é um tanto mais poético que as canções de Led Zeppelin. A delicadeza da letra se condensa melhor, e tem camadas mais inspiradas mesmo na forma como Tolkien redigia seus contos. A ambiência que Rivendell propõe é convidativa: você se sente no refúgio dos elfos e sua mente viaja na melodia. Ao fim dela, seu coração está em paz, como parece ser o sentimentos dos personagens de Tolkien quanto estão nos reinos élficos.
É interessantíssimo!

Apesar da menção em todo o texto sobre Neil, Rivendell é composição de Geddy Lee. O álbum seguinte, Caress of Steel de 1975 trás The Necromancer, agora sim, composta por Peart.
A canção tem mais de 12 minutos. Interstícios narrados divide "o épico" em três partes ou seja, três atmosferas e níveis de emoções que variam conforme o tema: a primeira parte - Into the Darkness é sombria e de certa forma, lenta, cabisbaixa.
Mais intensa, é a segunda: Under the Shadow é quase caótica por ser bem rápida.
Por fim, The Return of The Prince vem a calmaria, colocando um fim à parte psicodélica e deixando o som mais alegre e um tanto aliviado.


The Necromancer é uma história ainda mais Tolkien: três viajantes são perseguidos pelo mesmo mago que olha da torre para todas as criaturas com seus "olhos vigilantes e mágicos". Necromancer é o nome usado para se dirigir à Sauron depois de ser derrotado por Isildur e seu exército. Perdendo a sua forma física, ele foge para Dol Guldur, ao sul da Floresta das Trevas. Pouco antes à  Guerra do Anel,  quando Bilbo encontra e toma o Anel de Gollum, Sauron havia retornado às fortalezas de Mordor e reconstruído as as torres de vigília em Barad -dûr.

Nomes complicados...? É. Mas bem maneiros hehehehe... Esse retorno do Necromante fica um pouco claro na primeira parte da música, sonoramente sombria, com o trecho:


"The road is lined with peril
The air is charged with fear
The shadow of his nearness
Weighs like iron tears"
(A estrada está cheia de perigos / O ar está carregado de medo / A sombra do seu próximo / Pesa como lágrimas de ferro)

Necromante é mau e no momento em que luta para reaver o seu artefato mágico como força para subjugar todos da Terra-Média, ele não mede esforços. Convoca os orcs, corrompe o Mago Saruman para ser seu aliado,  recruta os Nâzgul, os Espectros do Anel. A sombra assola novamente como o clima da música e a letra dão conta:


"Brooding in the tower
Watching o'er his land
Holding ev'ry creature
Helplessly they stand
Gaze into his prisms
Knowing they are near
Lead them to the dungeons
Spectres numb with fear
They bow defeated"
(Meditando em sua torre / Observando toda a sua terra / Segurando cada criatura / Sem esperanças eles ficam / Olham destro dos prismas / Sabendo que estão perto / Leva-os até as masmorras / Espectros tomados pelo medo / Eles se curvam, derrotados)

A terceira parte remete à Aragorn em The Return of The Prince. Aragorn vence todas as ameaças de sucumbir a corrupção e o desejo de poder em ter o Anel para si. Ressurge como rei de Gondor depois de várias batalhas e ameaça Sauron nos portões de Mordor. Lá dentro, Frodo luta com Gollum pela destruição do objeto nas Montanhas da Perdição . O um Anel é o que ainda assegura e existência da maleficência de Sauron. 


"Stealthily attacking
By-Tor slays his foe
The men are free to run now
From labyrinths below
The Wraith of Necromancer
Shadows through the sky
Another land to darken
With evil prism eye"
(Atacando furtivamente / By-Tor ataca seu inimigo / Os homens estão livres para correr agora / Dos labirintos abaixo / O Fantasma do Necromante / Sombras através do céu / Outra terra para escurecer / Com o maligno olho do prisma)

Às primeiras audições, tudo parece meio experimental, mas Peart já dava a deixa do quão capaz seria sendo o principal letrista do Rush. 
Como dito, as referências das músicas da banda são mais claras e menos abertas à muitas interpretações ou formas de dizer a história, como era o caso das músicas tolkienianas do Led Zeppelin. Ainda assim, mais robustas e complexas, a audição de ambas - Rivendell e The Necromancer -, são necessariamente perfeitas para o leitor mais clássico de Tolkien pois, ao meu ver dão mais corpo à literatura, casam de forma mais limpa e possuem camadas atmosféricas mais profundas e enraizadas. 

Para você aí, que não tentou ouvir as músicas do Zeppelin ou as do Rush lendo os temas encontrado em  O Senhor dos Anéis ou O Hobbit por exemplo, pode ser uma experiência interessante. Tentem aí e depois nos conte!!  É um exercício bem legal. 

Em breve, volto com mais dessa série!
Até lá, abraços afáveis e lembrem-se: Musique-se!

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