A influência da literatura de Tolkien na música - Especial Blind Guardian (4)

O quarto álbum do Blind Guardian, Somewhere Far Beyond, é um dos meus favoritos da banda. O disco lançado em 1992 colocou de vez a banda nos moldes do speed/power metal e aqui no Musique-se, pedimos licença para comentar os pontos mais importantes em mais uma edição da série. 


A arte da capa de Andreas Marschall – o mesmo de Tales From The Twilight World – segue o padrão de guerreiros medievais à moldes de Turin ou Aragorn – personagens conhecidos na fantasia de Tolkien. Além disso, a capa e duas faixas, com o pré título de Bard’s Song, deu ao grupo o apelido de "bardos", que comentamos na primeira postagem dessa série

Começamos por elas, então: Divididas em duas faixas, The Bard’s Song – In The Forest e The Bard’s Song – The Hobbit são canções cruciais para o álbum e contam com características sonoras muito claras dos alemães.

A primeira, In The Forest, foi baseada num vídeo game de 1985, Tales of the Unknown: Volume I – The Bard’s Tale, criado por Michael Cranford. Notadamente um dos melhores jogos de RPG (role playing game) da década, especialmente pelos gráficos em 3D e retratos de personagens parcialmente animados conseguimos captar um pouco mais da arte da capa e toda a ideia que acompanha os alemães desde o início de suas carreiras. Observando atentamente a capa do jogo, percebemos a semelhança com a capa do Somewhere Far Beyond:


Acredito que o RPG não teria surgido em 1974 sem as obras de Tolkien ter propiciado a faísca, embora é óbvio que não foi o único a influenciar a criação do jogo. A premissa dele consiste em representar ou interpretar papéis em uma narrativa pré estabelecida, com boa parte da liberdade de escolha sendo a principal chave do desenrolar da brincadeira.  O primeiro jogo desencadeou outros estilos ou subgêneros: além do de fantasia, com masmorras, magos e dragões, existem os RPGs de super-heróis (mutantes), os de ficção científica (cyberpunk e space opera) e o de horror/terror, inaugurado por H. P. Lovecraft e seu Chamado de Cthullu.
O primeiro jogo do tipo surgiu com o nome de Dungeon & Dragons e foi criado por Gary Gygax e Dave Arneson. No início, o D&D (abreviatura de Dungeons & Dragons) era um simples complemento para um outro jogo de peças de miniaturas chamado Chainmail ("cota de malha"), criado em 1971 por Gary e Jeff Perren, mas se transformou em um jogo diferente e inovador. Este tipo era extremamente simples comparado aos Jogos de Interpretação da atualidade e tinha uma origem influenciada por jogos de guerra e de estratégia.

Praticamente junto com o D&D foi lançado outro jogo, mais complexo e que já mostrava um outro tipo de abordagem para o RPG: Empire of Petal Throne foi lançado em 1975. Não teve sucesso de vendas, porém trazia uma novidade: passava das lendas medievais para novas criaturas de raças inspiradas em lendas astecas, egípcias e de povos da antiguidade; e foram criadas até uma nova língua para os jogadores se comunicarem enquanto jogavam. Isso está totalmente ligado à forma como Tolkien produziu o seu legado narrativo! As raças da Terra-Média foram dispostas em origens e cultura, todas formalizadas a partir de idiomas criados pelo professor com o devido critério de sua formação em filologia. Antes de escrever qualquer livro, ele já tinha pronta, idiomas completos para as raças que comporiam a Terra-Média.

Em 1980, D&D já era uma grande febre e em 1983 o jogo deu origem a série animada de mesmo nome: Dungeons & Dragons teve aqui no Brasil o nome de Caverna do Dragão - sim, aquele mesmo que não teve um final, mas milhares de teorias. 


 O texto da capa do jogo Bard’s Song é a seguinte:

"Há muito tempo, quando a magia ainda prevalecia, o malvado mago Mangar, o Escuro, ameaçava uma cidade pequena, mas harmoniosa chamada Skara Brae. Criaturas malignas escorreram para Skara Brae e se juntaram ao seu domínio sombrio. Mangar congelou as terras vizinhas com um feitiço de Eterno Inverno, isolando totalmente Skara Brae de qualquer ajuda possível. Então, uma noite, todos os milicianos da cidade desapareceram..."

E por aí vai... A introdução mostraria um bardo sentado na taberna e com um alaúde começava a canção: 
A música que eu canto
contará a história
de um dia frio e de inverno;
Das muralhas do castelo, das
salas iluminadas por tochas
e do preço que os homens tinham que pagar.
Quando o mal fugiu
E homens corajosos sangravam
O Escuro veio para ficar,
'Até homens da antiguidade
Por sangue e ouro
tinham resgatado Skara Brae

Mas e na canção do Blind Guardian, Bard's Song - in The Forest?


Temos o começo bem semelhante ao do jogo, reparem:

Now you all know
The bards and their songs
When hours have gone by
I'll close my eyes
In a world far away
We may meet again
But now hear my song
About the dawn of the night
Let's sing the bard's song
(Agora vocês todos conhecerão / Os bardos e suas canções / Quando horas se passarem / Eu fecharei meus olhos / Em um mundo distante / Nós poderemos nos encontrar novamente / Mas agora ouça minha canção / Sobre a aurora da noite / Vamos cantar a canção do bardo)

No fim, o gatilho para a seqüência, estaria calcado no Tolkien:

In my thoughts and in my dreams
They're always in my mind
These songs of hobbits, dwarves and men
And elves
Come close your eyes
You can see them tôo
(Em meus pensamentos e em meus sonhos / Elas estão sempre em minha mente / Estas canções de hobbits, anões e homens / E elfos / Venha, feche seus olhos / Você pode vê-los também)


Se In the Forest o tom era de uma canção semi acústica, quase folk, em The Hobbit, o power metal é pulsante.

Out in the distance
There's so much gold
The treasure that I've found
Is more than enough
Far to the hill we've to go
Over the mountain and seas
To the old hill
Where the old dragon sleeps
Blind in the dark dungeon's night
So God please take me away from here
And Gollum shows the way right out
(Lá, bem distante, / Há tanto ouro / O tesouro que encontrei / É mais do que o suficiente /Para a colina temos que ir / Sobre a montanha e os mares / Até a velha colina / Onde o velho dragão dorme / Cego na escura noite da caverna / Portanto Deus me tire daqui / E Gollum mostra o caminho da saída)

Neste trecho inicial damos de cara com a referência à Bilbo em sua missão de acompanhar os anões até Erebor para resgatar o ouro que os pertence e que são "protegidos" por um dragão, mote da história de O Hobbit. Há também uma sutil menção à Gollum e capítulo "Riddles in the dark" – o desafio de advinhas que Bilbo e Gollum travam para que a criatura esquálida não devore o hobbit. É neste momento em que Bilbo encontra o Um Anel e toma o objeto para si, burlando o cerco de Gollum.

The dying dragon brought trouble and pain
And horror to the halls of stone
I'll take the mighty stone
And leave the dwarves behind
Ice and fire and forest we passed
And horror in the halls of stone
(O dragão mórbido trouxe problemas e dor / E horror para os salões de pedra / Eu pegarei a poderosa pedra / E deixarei os anões para trás  Gelo, fogo e florestas nos passamos / E horror nos salões de pedra)

'The mighty stone' é uma responsabilidade de Bilbo: sua missão é recuperar a Arken Stone, a pedra de reis.
A Pedra Arken era de Thrain, pai de Thorin, Escudo de Carvalho, líder da comitiva de "retomada", "reconquista" de Erebor. A pedra - também conhecida como o "Coração da Montanha" - é uma joia maravilhosa procurada por ser um símbolo de sua casa,  ela se encontraria no meio do tesouro que Smaug, o dragão, estaria vigiando. No livro O Hobbit, ela foi descoberta por baixo da Montanha Solitária pelos antepassado de Thorin, Thrain e lapidadas pelos anões. Assim, Arken Stone tornou-se o símbolo da família do Povo de Durin e era mais do que necessária no retorno do filho para a casa.

Trolls in the dark
The dawn took them all
Caught in the wood
By the wooden kings' men
(Trolls no escuro / O amanhecer levou-os todos / Capturados na floresta / Pelos homens do rei-da-floresta)

Outra consideração da história de O Hobbit está no trecho acima: Bilbo persuade três trolls que capturam os colegas anões no caminho. Para não cozinhá-los, Bilbo os entretém até que o sol nasce e os transforma em pedra.
Noutro momento da narrativa, eles acabam todos nos palácios dos elfos da floresta de Mirkwood com o rei Thranduil,  pai do elfo guerreiro Legolas – representante dos elfos na Comitiva do Anel unss 50 anos depois, quando acontece o enredo de O Senhor dos Anéis.
Nos filmes de Peter Jackson adaptados d’O Hobbit, Legolas foi inserido de forma um tanto desnecessária no longa. O intuito era trazer o herói para para dar mais ação à história. 
A presença de Legolas e o ator Orlando Bloom ainda não foi completamente inútil ou até criminosa (sim, o exagero é porque sou fã) como foi a inserção de Tauriel, uma personagem feminina inexistente na trama. Além disso, a atriz fez um desserviço ao imaginário dos elfos. Caricata, mal deu para "engolir" a sua personagem. Evangeline Lilly deu as caras nesta semana que passou, nos noticiários: vivendo com um pai doente e idoso, escancarou sua ignorância dizendo ser bobagem se manter dentro de casa para evitar a contaminação do novo coronavírus, o Convid-19. Em meio à pandemia, a "atriz" que também fez a Vespa na franquia Homem-Formiga da Marvel e o seriado Lost, disse que algumas pessoas precisam de liberdade (oi?) e reclamou uma suposta conspiração - "todo ano de eleição tem alguma coisa". Deplorável.

Voltamos ao que interessa de fato e não,burrices alheias. O último trecho da música Bard's Song - The Hobbit:

By the spell of gold
The king under the mountain
Will risk the great war
Oh what a fool
He's losing control
So I am trying to find a way
Blind in the dark dungeon's night
Then darkness comes from the northern side
And Thorin clears his mind
(Pelo feitiço do ouro / O rei sob a montanha / Arriscará a grande guerra / Oh, mas que tolo / Ele está perdendo o controle / Então eu estou tentando encontrar uma maneira / Cego na escura noite da caverna / Então a escuridão surge pelo lado norte / E Thorin clareia sua mente)

Nesta parte, um caso mais complexo. Em torno da pedra Arken e as demais peças do tesouro, o dragão uma metáfora sobre a cobiça por riquezas, ouro. Smaug, perverso e poderoso é símbolo da avareza. Nestes termos, a pedra e a riqueza traria aos reis anões uma certa perturbação. Tanto que Thorin, ao entrar em Erebor já sem a ameaça de Smaug, manifesta uma espécie de esquizofrenia. "Pelo feitiço do ouro / o rei... arriscará a grande guerra", diz na letra. Cego pela cobiça, ele recobra a sanidade, e lidera o seu grupo de forma consciente - embora, tarde demais...

Neste quarto álbum, outras referências "para além de Tolkien" aparecem nas demais faixas.
A literatura fantástica não os abandonava: Journey Through the Dark (ouça aqui) é sobre Jhary a-Conel, um bardo e companheiro do Eternal Champion, recorrente nos livros de Michael Moorcock. Já falamos desse autor aqui.
E a inspiração nos escritos de Moorcock, não pararam aí. The Quest for Tanelorn é sobre a busca do Eternal Champion por uma cidade chamada Tanelorn, uma cidade fictícia das histórias no seu chamado Multiverso. Amigo íntimo dos bardos, Kai Hansen é o "lead guitar" da faixa, bem como um dos autores da música.

Theatre of Pain é baseado no romance de fantasia The Merman's Children de Poul Anderson. Situado no final da era medieval , The Merman's Children detalha o fim do último bastião do reino dos Merfolk, um dos reinos de fadas que está sendo desfeito pela onda do cristianismo. A cidade do rei Liri (o Merman do título) fica sob as ondas nas costas da Dinamarca, coexistindo pacificamente com os humanos terrestres até ser exorcizada por um padre zeloso e seus sinos da igreja. A maioria dos Merfolk é destruída ou dispersa, incapaz de suportar o ataque, deixando apenas a prole do rei por um amigo humano. A história segue-os e seus vários destinos, enquanto procuram um lugar para chamar de seu, em locais tão variados quanto as colônias nórdicas na Groelândia e as costas da Dalmácia.

A faixa-título Somewhere Far Beyond  remete a outro autor famoso e que também é um dos favoritos de Hansi e companhia. A letra se situa numa recontagem da série A Torre Negra de Stephen King: especialmente O Pistoleiro (1982) e A Escolha dos Três (1987).

Novamente, letras que traçam um caminho na ficção científica é compartilhado com os fãs: Time What Is Time tem a letra inspirada no Blade Runner – filme de 1982, dirigido por Ridley Scott – sob a perspectiva dos Replicantes. Ouça a música, aqui. Rápida, a música é uma das mais bem trabalhadas do disco. 
Se no disco anterior eles beberam da fonte de Duna para criarem Traveler in Time, aqui eles sacaram Black Chamber, cuja a letra ambienta alguém que se encontra no mundo de Twin Peaks e enfrenta um destino sombrio. Twin Peaks foi uma série de televisão norte-americana criada por Mark Frost e David Lynch – este último, o diretor da adaptação do livro Duna para as telonas conforme comentamos nesta postagemA série segue a investigação do agente do FBI Dale Cooper sobre o assassinato da popular estudante de colegial Laura Palmer.
Black Chamber é curtinha, tem pouco mais do que 50 segundos e é basicamente só Hansi e um piano.

Porém, nem tudo é só "fantasia" no quarto álbum do Blind Guardian. Ashes to Ashes refere-se à morte do pai do vocalista, Hansi Kursch, e fala do momento difícil enfrentado por ele naquele momento, de foma metafórica. Ouçam!
Neste álbum também há alguns covers interessantes que merecem um destaque: o primeiro, da banda Satan, Trial by Fire tem ambiência histórica – fala sobre as bombas de Hiroshima e Nagasaki na Segunda Guerra. Ouça a original aquie a cover do Blind Guardian, aquiTanto esta, quanto a segunda faixa cover, são bônus do disco. 
Spread Your Wings do Queen, já conhecidíssima por todos, (refresque a memória!), escrita por John Deacon, descreve um jovem que ganha a vida varrendo o chão. Freddie age como um bardo, narrador da história, incentivando ele a viver os sonhos e "abrir as asas e voar para longe".
Fechamos com essa, a postagem número 4 da série:


Abraços afáveis, ignorem os presidentes babacas e fiquem bem - "spread you wings" em casa! Musique-se!

(Para conferir as reportagens dessa série: Blind Guardian e Tolkien e a Música.)

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