Crowley: O bruxo “influencer” de rockeiros (6)


Chegamos à nossa penúltima postagem da série sobre a influência do ocultista Aleister Crowley na música contemporânea. Nesta, falaremos especificamente de uma banda que muito nos agrada.
A cena do metal não estava sendo influenciada em baixa escala. O "perverso" Crowley iria atrair até mesmo uma das maiores bandas do NWOBHM: o Iron Maiden.

A relação entre Aleister Crowley (ironicamente "a Besta666") e a banda inglesa foi bem profunda e não superficial como ocorrera com Ozzy Osbourne (post anterior).
Bruce Dickinson, um conhecido estudioso de ocultismo, estava ali para dar essa mãozinha ao grupo e bem... as referências e os detalhes são vastos. Preparados?

Começamos com a faixa intitulada Revelations, do álbum Piece of Mind lançado em 1983. Ali, os versos são inspirados nos graus de transformação da Thelema (a seita encabeçada por Crowley) alegoricamente representando a transposição do abismo thelemico.
O verso "Just a babe in a black abyss" ("Apenas um bebê em um abismo negro") é um referência ao postulado da Thelema  - "bebê do Abismo". Esse "ser" designaria - dentro da Thelema - "aquele que mergulha e atravessa o Vazio".
É assim complicado mesmo, mas vale o esforço. Acompanhem: esse Abismo metafísico e psíquico está entre o universo real e o universo ilusório, entre  dimensão do espírito e a igualmente insana (no entanto, aparentemente segura) dimensão da matéria. 
Deu um nó na cabeça? Pois é... Ainda tem mais! O "iniciado" que fracassa em cruzar o Abismo, ou seja, em assimilar o conhecimento nele contido, nesse caminho de transe ou sei lá o quê, geralmente enlouquece. (Tem certeza que não enlouquece antes?...)
O verso "No reason for a place like this" ("Nenhuma razão para um lugar como este") mostra que, uma vez no Abismo, a razão humana, tal como se conhece, é completamente suprimida. O que permaneceria é uma razão transcendental e única.


Nessa música há um verso ligado à Tarô: "The Secret of the Hangman, the smile on his lips" ("O Segredo do Enforcado, o sorriso em seus lábios").
"O Enforcado" é uma carta de Tarô cujo significado divinatório gira em torno de: vida em suspensão, transição, mudança - reversão da mente e na maneira de viver -, aspectos passivos, de apatia e inércia, além de tédio, abandono e renúncia. No jogo das cartas, o Enforcado é o entendimento de aproximação de novas forças vitais: enfrentar novas experiências, render, sacrificar, arrepender, reajustar, regenerar, isto é, melhorar, renascer e etc..

Já o significado cabalístico, segundo as minhas rasas pesquisas, tem algo mais próximo ao Abismo thelêmico: O Enforcado, o Caminho de MEM, faz a ligação entre Hod e Geburah no Pilar da Severidade. Isso soa parecido com aquele lance das dimensões: é um canal de comunicação entre a Personalidade (a dimensão real da Thelema?) e o Eu Superior (a ilusória?), embora suas implicações de iniciação sejam bem diferentes daquelas dos três Caminhos (fazer de transposição do abismo?) que conduzem diretamente a Tiphareth.
Este é o Caminho da Água e a letra Mem é uma das três letras Maternais. Sob alguns aspectos, este é o Caminho do batismo na Água Maternal (por isso talvez, Crowley usou o termo "bebê"?). 
A Água significa consciência, o Primeiro Princípio dos Alquimistas, a substância a partir da qual tudo o mais é produzido. Esta substância, às vezes chamada de Princípio do Pensamento, é simbolizada pela Água porque tem algumas das propriedades da água física, em particular o seu movimento ondulatório. [...]
Embora seja possível descrever as propriedades e atividades desta Água, é somente no Vigésimo Terceiro Caminho que a pessoa pode ser efetivamente absorvida por ela, ou seja, "afogar-se" nessas águas e perceber a si mesma (atravessar o Vazio e assimilar o conhecimento metafísico inerente?) como uma parte intrínseca e inseparável da Consciência Unitária. (Sobre o Enforcado, neste link)

Olha só! Seria tudo isso alguma fonte de inspiração? Afinal, Sr. Crowley estudava ocultismo e misticismo antes de formular, em definitivo, os preceitos da Thelema. Não podemos afirmar com certeza, pois, essas coisas, demandam tempo e também, estudo aprofundado. Mas essas relações podem soa muito estranhas, mas fazem sentido. Em filosofia antiga, Heráclito de Éfeso citava a água como exemplo didático de seu pensamento sobre "tudo flui, nada permanece". Essa teoria está fundamentada em razão da dialética: 

Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários.

Tal citação se liga ao que falamos sobre o significado cabalístico do Enforcado. A mudança da corrente como forma de mudança de consciência. 
Interessante, para dizer o mínimo, então Crowley não era só um maluco desvairado. 

Na letra de Revelations ainda há referências mitológicas de origens egípcias: "The Eyes of the Nile are opening, you'll see" ("Os Olhos do Nilo estão se abrindo, você verá") e "As the Eye of the Sun rose on her lips" ("Enquanto o 'Olho de Rá' surgiu em seus lábios"). Essas referências nos levam direto à Powerslave, o disco seguinte da discografia da banda; a faixa-título retoma o tema (ouça).
A letra da música trata de uma parábola sobre um faraó tido como deus e que não quer morrer, isto é uma metáfora, por assim dizer, sobre aqueles que fracassaram ao tentar cruzar o abismo thelemico.
E tem mais: Em Seventh Son of a Seventh Son, lançado em 1988, temos Moonchild (aqui), cujo o título, senhores e senhoras é homônimo a um dos livros de Crowley. Os versos dela trazem menções a "Babalon" e à "Mulher Escarlate", importantes figuras no sistema thelemico (que é um tanto confuso e "viajado" como já pudemos comprovar uns pedacinhos).

Esses nomes, apesar de derivados de um outro livro e de um outro guia religioso (judaico-cristão), a Bíblia, são próprios do sistema mágico de Crowley e são equivalentes à deusa Lilith (uma deusa da Mesopotâmia), Hécate (uma deusa grega), Kali (outra deusa, só que hindu), entre outras, representando ainda os aspectos femininos da Natureza e a Grande Mãe do universo, livre dos conceitos morais dicotômicos, ou seja, do bem versus mal. O álbum Seventh Son of a Seventh Son é recheado destes temas de magia, alquimia, ocultismo, bem e mal, e etc..

Quando falamos aqui da música Stairway to Heaven do Led Zeppelin e encontramos lá na letra "It’s just a spring clean for the May queen" - a Rainha de Maio, pudemos investigar do que se tratava: Além do poema de Crowley, "The May Queen", havia também o ritual céltico "Dia de Maio". Chegamos a adaptação/representação desse ritual para o filme The Wicker Man de 1973. Muito embora o filme não seja exatamente um musical, várias dicas para o mistério da trama estão escondidas na cantoria que permeia o longa. Em 2000, com o lançamento de Brave New World, uma das faixas teve a inspiração no título do filme: The Wicker Man. O Maiden não deixava passar nada e ainda mandava muito bem em mais uma excelente música.


No entanto, é preciso salientar que a música não deve ser confundida com outra música - Wicker Man  (ouça aqui) da carreira solo de Bruce Dickinson. Essa sim, as letras são mais estreitamente com temática em torno do filme. 

No álbum The Final Frontier de 2005, novamente surgiram alguns temas sobre alquimia, magia crowleyana e expansão da consciência. Na música Starblind ouvimos: "Let the elders to their parley Meant to satisfy our lust" ("Deixe os anciões fazerem a negociação Designada para satisfazer nossa luxúria"). "Lust" é o nome de uma das cartas do tarô de Crowley, que se refere, entre outras coisas, a tudo o que é dos sentidos e que provoca êxtase.
Lembram na abertura dessa série que mencionei que Crowley ensinava os seus seguidores que, pedidos feitos durante o sexo, se concretizariam? (relembre aqui) Pois, para o mago, não deviam ter medo que qualquer deus algum lhe negasse conseguir o que queria, através do alcance do prazer. 
Os anciãos ditos no trecho destacado representam a religião dogmática e repressora do Aeon passado, que oferecem liberdades restritivas e que "negociam" aquilo que lhes traz vantagens ilícitas.
Na Thelema, a vontade livre e o desejo pela vida são satisfeitos naqueles que se libertaram dos ditos religiosos e que estão sem "o dispositivo cruel da religião", conforme o verso "Religion's cruel device is gone". Noutra passagem, "You are free to choose a life to live" ("Você é livre para escolher uma vida para viver") é outra referência à Lei de Thelema, referindo-se ao cumprimento dessa Vontade: "Faça o que tu queres"...

No mesmo disco, temos a faixa The Alchemist, que vai além em mencionar um mero alquimista. O trecho "My dreams of empire from my frozen queen will come to pass" ("Os sonhos de império da minha rainha congelada irão passar") refere-se à rainha Tudor, Elizabeth I, que protegia o suposto espião e mago John Dee (1527-1608), citado no verso "Know me, the Magus I am Dr. Dee" ("Conheça-me, o Mago Dr. Dee sou eu").



John Dee é conhecido especialmente por seu trabalho sobre magia enochiana (magia baseada no rito de evocação e comando de vários espíritos) e por sua ligação com o alquimista e clarividente Edward Kelley (1555-1597), com quem "criou" esse poderoso sistema de magia, e que foi, posteriormente, praticado por Crowley.
Aleister Crowley era mesmo um cara peculiar: acreditava ser também a reencarnação de Edward Kelley... Se autodenominava a "besta666"... Personalidades múltiplas, hã?

A letra da música descreve as práticas de John Dee e Edward Kelley com a magia enochiana, considerada como um sistema de contatos com os anjos, isto é, os "demônios". Enquanto Edward Kelley se comunicava com os seres enochianos, conforme o verso da letra "Know you speak with demons" ("Sei que você fala com demônios"), John Dee anotava o "processo".
Os anjos  não são os que estamos acostumados, não são aqueles retratados como bebês de cabelinhos encaracoladinhos e asinhas, ou homens brancos esbeltos com asas também brancas. Nada disso. São seres considerados alienígenas terríveis e/ou demoníacos, muito semelhante ao do sentido original grego de "daemon", que quer dizer, "espírito", "gênio". 
O termo "daímôn" - o gênio pessoal - foi usado pelo filósofo Sócrates quando ao contrário de seus colegas sofistas, não abriu uma escola e não cobrou dinheiro por seus ensinamentos. Ele dizia que apenas falava em nome do seu "daímôn", do seu gênio pessoal e assim, "disseminava" o que tomava enquanto conhecimento filosófico. 

Esses demônios de Dee e Kelley estão ligados ao que conhecemos como "anjos caídos", os supostos instrutores e doadores do conhecimento nos primórdios da espécie humana. Tais anjos enochianos foram contatados por Crowley lá naquela casa em que pertenceu ao Jimmy Page, lembram? Ele promoveu um ritual de evocar, pelo nome, alguns desses "demoninhos", e como não terminou o ritual, o local ficou com fama de "amaldiçoado" depois que ele foi vendido.

As invocações enochianas de Dee/Kelley e, por extensão, Crowley são referidas no seguinte verso de The Alchemist: "Hear the master summon up the spirits by their names" ("Ouça o mestre chamar os espíritos por seus nomes")...

Ufa? Que nada!!! Eu não posso deixar de falar especificamente do grande Bruce!
Em sua carreira solo, Dickinson mergulhou nas referências ao mago Crowley e podemos ainda destacar mais músicas que se referem ao excêntrico bruxo.
Man of Sorrows, faixa de Accident of Birth (1997) fala da juventude de Aleister Crowley e traz o mantra "faça o que tu queres" na letra - "'Do what thou wilt!', he screams from his cursed soul" ("'Faças o que tu quiseres', Ele gritou de sua amaldiçoada alma")
Ao contrário da música Mr. Crowley de Ozzy, essa faixa de Bruce é um melhor exemplo de exaltação da figura do mago:

A tortured seer, a prophet of our emptiness
Wondering why, wondering why

Man of sorrows, I won't see your face
Man of sorrows, you left without a trace
("Um visionário torturado, um profeta de nosso vazio / Perguntando por que, perguntando por que
Homem sofredor, não verei seu rosto / Homem sofredor, você saiu sem rastro")




The Chemical Wedding (1998) – onde Bruce usou o trabalho de Willian Blake – é o álbum mais ocultista de sua carreira solo, sem sombra de dúvidas. Os detalhes estão todos lá. A letra de The Tower, por exemplo, traz muitos dos ensinamentos alquímicos de Crowley.

A música fala especialmente sobre as imagens alquímicas do tarô e do zodíaco, importantes nos preceitos de Crowley. O próprio título da música se refere a uma destas cartas "A Torre".  Na letra da música os versos "There are twelve commandments/ There are twelve divisions" ("Há doze mandamentos/ Há doze divisões") são referidas aos doze signos astrológicos dispostos divididos em casas de 30º no cinturão (imaginário) do zodíaco com seus "mandamentos".
A frase "The pilgrim is searching for blood" ("O peregrino está à procura de sangue") também deve ser destacado. Ela diz que o alquimista em busca, em sua senda solitária, está procurando sua iluminação; o sangue é uma referência à fase "vermelha" da alquimia chamada "rubedo".

Para aqueles que já assistiram aos filmes ou leram Harry Potter, está bem fácil de explicar: esse "rubedo" é a tal Pedra Filosofal (que lá na história, foi "criada" por Nicolas Flamel). A Pedra é "encontrada" e o alquimista (ou qualquer iniciado em alquimia) se torna um sábio "imortal" autoconsciente, realizando sua própria vontade livre, uma referência direta à Lei de Thelema e que está presente no seguinte verso da música: "To look for his own free Will" (“Buscar por sua própria Vontade livre”).


Lovers in the tower
The moon and sun divide
the hanged man smiles
Let the fool decide
the priestess kneels
the magician laughs 
("Amantes na Torre/ A Lua e o Sol divididos/ o Enforcado sorri/ Deixe o Louco decidir/ a Sacerdotisa se ajoelha/ o Mago dá risada")

Acima, temos mais cartas do tarô crowleyano: The Lovers (Os Amantes), The Tower (A Torre), The Moon (A Lua), The Sun (O Sol), The Hanged Man (O Enforcado), The Fool (O Louco), The Priestess (A Sacerdotisa) e The Magician (O Mago).
Há quem diga que a música contém alguns segredos alquímico-ritualísticos de magia sexual. Eu confesso que procurei algum indício, mas nada nesse sentido ficou escancarado a ponto de citar.
De todo modo, já me alonguei bastante... (risos).

No próximo post, o último dessa série, a gente vai buscar fechar o assunto com chave de ouro.
Fiquem bem e até a próxima!

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